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“Cosmópolis” – A maestria da escrita de Carlos Pessoa Rosa

Pintura 'Prostitutas en el bar' (1902) de Pablo Picasso, em tons azulados, evocando a melancolia urbana do conto Cosmópolis Lerdos passos. Acalcanha a bengala no chão para diminuir o peso no joelho que dói. Ao redor, o ritmo patético e melancólico, morada da aflição. A roda denteada dos motores, ruidosa, e a fuligem na gola da camisa. Rodas sem vento e rumo. Passa a maior parte do tempo com o olhar na calçada, cuidado com os buracos, evitar fratura de fêmur, seria o fim. A paixão antiga na dobra dos tempos, sem vento os pensamentos permanecem nuvem na cabeça, a moça dourada que apareceu à porta do quarto… Nenhum passado resiste à oxidação, mas a paixão tatua, daí pequena; alva; maxilares salientes; olhos estirados de um azul. Os diálogos no abismo da memória, agarrados ao falo: Fala comigo. Fala? O cheiro permanece, seu dedo irônico, de unha pintada, mostra um burro solto, havia burros soltos na rua do Oratório, casas de fundo, um jardim na frente, havia a esperança, a camponesa com um quimono de crépon cor de fogo… Budapeste em São Paulo. O carro passa, música no último, movimenta o pescoço até onde a artrose permite, procura Lizst, Liebestraum 3, o velho Lizst, sério e pesado como a coroa de ferro de Santo Estêvão… Encontra a dança da garrafinha…

Olho na tela e… Não preciso mais do imaginário da infância, o Japão está bem diante de mim, não o de Kurosawa, mas o globalizado, da Coca-Cola e dos McDonald’s. Não, não é preciso perfurar o globo para descobrir as minúsculas bonecas em túnica longa. Nem da tela precisamos. Saí de uma cirurgia. Chove forte. Da porta do Hospital Bandeirantes, observo a tarde escura e mergulhada na água que escorre até o bueiro. Luzes avermelhadas dão um tom soturno no bairro. Uma corrida rente aos paredões antigos da Rua da Glória. Uma esquina, dobrada à esquerda. Outra, derrapada à direita… Japão. Ser estrangeiro carrega essa necessidade de preservar. Os passos miúdos e arrastados com seus guarda-chuvas com jardins japoneses. O Japão de São Paulo mantém vivo o verdadeiro. Pequenino como um haikai. Dentro, o branco; fora, o amarelo. A estranha admiração pelo leque com bonecas de franja curta, pretíssima, os jardins com suas árvores anãs… Outra criança. Outra mulherinha. Outro homenzinho. Outras crianças. Outras mulherinhas. Outros homenzinhos. Bonecas. Sigo a Conselheiro Furtado, Conde de Sarzedas… Bazar das bonecas. Entro no minúsculo salão de luz lilás. Atrás do biombo, bonecas expostas, olhos sem cílios, doces, oleosos, de amêndoa, malpousados à flor da pele. Retiro os sapatos. Escolho uma mesa de canto. São todas baixas. A cortina branca com ideogramas pincelados em negro. Tudo com o toque de uma pena, delicado e leve. O sujeito que me serve tem as sobrancelhas grossas e negras. Peço uma bebida. Aguardo seu efeito. A pinga japonesa logo derruba. Agrada-me uma japonesinha séria, distante, talvez pelo efeito de drogas, entre cortinas de cretone, alegre, de desenhos quase tão japoneses quanto ela. De fora, apenas o ruído da chuva. A luz piscando, luzes elétricas, a japonesa distante. O medo… Sempre me acompanhou. A profissão médica, um disfarce. – Não tem comida para branco. De onde a lembrança? Fez com que recuasse. Saio trôpego. A fome de mulher no sexo. Atravesso o Reino do Pequeno. Lilliput Amarela. Bazar de bonecas. Lembro-me do jovem amarrado à amada viajando pelas quatro estações do ano. Qual o nome do filme? Bonecas… A sutileza também na impossibilidade do amor.

Noturnos… Ruas estreitas, vazias, soturnas. Agora, é uma espécie de medo que começa a cair nos pingos da chuva. Mas aqui tem Shoki. O Caçador de Demônios, como é chamado, ventrudo e poderoso, espanta as criaturas que dão medo… E que tem medo… O poço. Do outro lado, a terra dos brancos, cair dentro do poço, sentido estação Sé, por exemplo!

Caminho pela nova praça da Sé, o imponente prédio da caixa, as placas de propagandas vestidas de gente, do povo mais simples, não somente os aposentados, mas jovens, homens e mulheres. O pátio do colégio, branco e azul, o relógio alemão dos Beneditos – onze longos roncos de bronze – encheu de fantasmas a noite. O ribombar dos sinos atravessa o viaduto Santa Ifigênia amortecido pela argamassa, cai sobre telhados envelhecidos e desaparece rapidamente. Aguardo um canto de onda no côncavo acústico de uma concha… Todos os pianos mudos. Um longo silêncio ocupa os telhados e as ruas. Bairro soturno. Continua o bairro dos bares. Mas sem os alemães tomando chope. Vê-se coxas e seios dividindo vitrine das ruas, homens à procura do sexo mais barato, a pouca luz exibindo sombras e pequenas entradas de hotéis de curta permanência. Se o medo e a música habitavam a noite, agora, o comércio da carne é quem ocupa os espaços. De cada portinhola, saem mulheres com suas roupas vulgares, apertadas no corpo, expondo cada curva ou cicatriz. Aceito o convite de uma luz esmaecida e entro no recinto. Um balcão à direita. Enquanto prepara um aperitivo para um freguês, dirige um olhar desconfiado para mim. Percebo quando sinaliza com a cabeça a minha presença para uma das garçonetes. Tem no rosto o peso da profissão e da maquiagem, no corpo, o cheiro de uma essência vagabunda. Leva-me a uma das mesas vazias, o verniz gasto como o sexo dela, a toalha envelhecida e manchada. Observa-me um tempo. Pergunta-me o que vou querer. Noto uma ambiguidade no modo de se expressar, algo de malicioso nos olhos, mas o que eu queria mesmo era encontrar gente, que a gente nunca viu, parecida com aquele Henrique VIII, ou aquele Burgomestre Meyer, pomposos e estufados, que saíram do pincel quinhentista de Hans Holbein. O que vejo na parede é a pintura de uma mulher desnuda, o sexo quase imperceptível pela sujeira, e o cão empertigado ao lado dela. Há um piano, mas apenas para enfeite, ao lado do palco, onde mulheres expõem seus volumosos seios e nádegas mergulhadas em celulite. Ao meu lado, a jovem caquética aguarda um gesto meu, talvez um tapa em seu traseiro, ou um toque em seus peitos avolumados pelo sutiã. Estranha quando peço um chope. Aceito a cerveja no lugar. Melancolia. Melancolia do sexo. Melancolia da noite. Fora, passa um alemão, passa outro, não passa mais… Além da garoa, chove a miséria.

Carlos Pessoa Rosa

Foto do autor

Assim descreveu o autor o professor de literatura portuguesa em Columbia, Ebion Delima, em memória: “além de médico e professor, Carlos Alberto Pessoa Rosa, caminha pelo conto com um fraseado robusto e a cadência de uma prosa surpreendente, indícios indefectíveis de ficcionista autêntico”. Nascido na cidade de São Paulo, entre a Lapa e Pirituba, fixou moradia, depois de formado e fazer pós-graduação pela Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo, na cidade de Atibaia. Casado com Lúcia Rosa, do Coletivo Dulcinéia Catadora, tem dois filhos, Marcos e Silvia, e Rafael e Melissa, como netos. Em 1998, o Centro de Editoração Pernambuco publicou o livro de contos “A Cor e a Textura de uma Folha de Papel em Branco”, vencedor do Prêmio Nacional UBE-PE, categoria ficção, jurado Raimundo Carrero, publicado pelo Centro de Editoração Pernambuco. Em 2010 agraciado no Literatura para Todos, MEC, gênero Novela, com o livro Sabenças. Na mesma época teve o livro infantil Una Casa Bien Abierta, publicado pela pequeño editor, Buenos Aires Argentina, com ilustração de Claudia Legnazzi. Contista selecionado no MAPA CULTURAL, teve seu texto publicado no D.O. Leitura. “Vitrais”, livro de poesias premiado na UBE-RJ, 1992, e “Factrais”, poesias, prêmio Ruth Scott do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, permanecem inéditos. Internacionalmente foi selecionado entre os 30 melhores contistas, 1994, e 20 melhores contistas, 1998, na Rádio Francesa Internacional. Em poesia foi selecionado no Instituto Piaget, Portugal, 1993/1995 e no prêmio “Carlos Sabat Ercasty”, Uruguai, 1993. O autor tem o prazer de fazer parte dos privilegiados poetas que tem seu trabalho selecionado para ser publicado na revista “Dimensão”. Atuante do Coletivo Dulcinéia Catadora, com livros publicados no gênero conto e poesia. No gênero crônica levou o primeiro Prêmio Stanislaw Ponte-Preta, jurado Gilberto Noll. Na poesia, ganhou o prêmio do Instituto Internacional de Poesia com o livro “Fonte Criadora”, publicado em 1990. “Mortalis”, prêmio Xerox, livro publicado pela editora Livro Aberto. Trata-se de um ensaio sobre a morte. Selecionado nos prêmios Cidade de Belo Horizonte, Poema no Ônibus, Poemas Azuis, Paulo Leminski, Caetano Veloso, Linguagem Viva, Sinpro – onde recebeu menção especial pelo conjunto dos trabalhos -, Academia Montesclarense, Via-Verso, Academia Feminina Mineira de Letras e Escriba, o autor participou do Atibaia 90, Varal Cultural de Leme e Salão de Poesia Psiu Poético. Juntamente com outros poetas organizou o espetáculo Violão e Poesia apresentado na Casa da Cultura Jandira Massoni, em Atibaia. Convidado pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, participou da feira do livro de Presidente Prudente e São José do Rio Preto. Foi um dos escritores da nova geração escolhido para receber o público leitor na Casa Mário de Andrade, em São Paulo, tendo organizado, junto com Lúcia Rosa, Oficina de Criação Literária, no mesmo local, em 1999. Participou de vários eventos em homenagem ao escritor André Carneiro, membro do grupo curador da Semana André Carneiro na cidade de Atibaia. O escritor tem trabalhos publicados em diversos periódicos (Folha de São Paulo – Caderno Sudeste, Revista Olhar da UFSCarlos, Philos, Linguagem Viva (SP), Correio do Sul (MG), Blau (RS), Garatuja (RS), Radar (GO), Blocos (RF), Atibaiense (SP), Jornal de Atibaia (SP), Luzes da Cidade (SP), Blow Up (SP), Café Expresso (SP), Revista Incomunidade (Portugal), Jornal da Associação Médica Brasileira, Associação Paulista de Medicina e Conselho Estadual e Federal de Medicina) e sites culturais (Blocos, Marcozero, Cafecomletrinha e Revista Proa). Atuante na área de bioética, foi coordenador do livro “Relacao Médico-Paciente: um encontro” entre outros. Foi editor do site meiotom poesia & prosa, seus livros podem ser encontrados na plataforma Amazon no formato e-book e papel.

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celso de alencar

A prosa de Carlos Pessoa Rosa é minha velha e conhecida amiga. Faz tempo que alimenta a literatura. Com propriedade. Com olhar profundo para a dignidade humana. Para a humanidade. Cosmópolis é um retrato que se fixa como arte.

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