
A mãO DO ARTISTA
A W. H. Auden
Entre folhas de livros, tantas,
e outras tantas folhas de plantas,
a mão do artista e a mão do
mistério buscam um acordo,
um convívio, entre suas muitas,
múltiplas folhas – pois, enquanto
a mão do artista risca com ciência
sobre o papel, o que vem a ser
Vedélia sphagneticola,
o popular bem-me-quer,
no jardim a mão do mistério
se auto elabora, fundida à
sua própria criação sem nome,
ao léu, entre chão e céu, entre
o perceptível e o imperceptível
a mão do artista e a mão do in
visível operam, em silêncio,
um concerto à duas mãos
CRONOS E KAIRÓS
Um tempo que dura
e um tempo que fulgura
O que navega lentamente
O que fulge incandescente
Ambos, presentes, no cosmo
e no caos do todo – deuses,
que estão em toda parte
da linguagem que se faz
arte – fruto que matura
à sombra de sua própria
árvore – meteoro que arde
na crina fugaz do instante.
Em opostos movimentos
faíscam a química entre
coração e pensamento,
composição de contrários
– Um, ritmo de estações
que se espera passar, uma
a uma, vagarosamente
– Outro, cavalo selvagem
que é preciso montar, zás,
na passagem, velozmente
E assim seguir adiante, diante
da falta de forma e sentido
com que vagamos nos sonhos
e tateamos a névoa do mundo,
sonâmbulos em busca do verbo
que faça a luz no universo
e nos dê, no fogo da criação,
a sensação de estar vivos
§§
ÁGRAFO
A boca sopra a palavra deuses
e milhões de mundos se iluminam
e se apagam sem ouvi-la
Da mão sai o rabisco-arabesco esperança,
linha de horizonte que mais se afasta
quanto mais se avança
No crânio ecoa a substantiva justiç,
pronúncia que não termina
em forma humana nem divina
A natureza não reconhece o que eu digo,
assim como não tenho sentidos para traduzir
seu idioma inescrito
§§
FáBULA
Entre a beleza e a maciez das flores
ele abriga sua pele áspera, rugosa,
andarilho castigado pelas intempéries,
que, em certa altura do caminho, pousa
à sombra dessa verde cabana, acolhido
por belas e generosas damas, rosas,
também munidas de espinhos – agudos,
que só acentuam suas delicadas formas
opostas ao hóspede de face deformada
Quasímodo à rejeição acostumado,
sorve no cântaro das folhas o orvalho,
vinho servido à sede com o repasto
de insetos, iguarias postas na toalha
de mesa estrelada da madrugada,
manto a envolver também o bruxedo:
príncipe feito corcunda ao nascente
e que assim segue na carruagem do sol
até os confins decadentes do ocidente
Assim o poeta, sapo no jardim, deslocado,
soa no vazio da noite, solitário, seu coaxo
***
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Autor
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Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, em 1963. Poeta e tradutor, tem 17 livros publicados: 14 no Brasil (9 autorais, 5 de tradução) e 3 no exterior (Reino Unido, Catalunha e México, com traduções, respectivamente, de Stefan Tobler, Joan Navarro e Víctor Sosa). Entre esses, os livros "Silence River", premiado na John Dryden Translation Conpetition (Reino Unido), com turnê de lançamento por oito cidades da Inglaterra, passando por Londres e Oxford; a antologia “A guerra invisível”, antologia indicada ao Prêmio Candango de Literatura 2022; e Poesia Reunida, editada pela UFPA - Universidade Federal do Pará. Diversas vezes publicado em revistas e antologias nacionais e internacionais, incluindo Portugal, Estados Unidos, Espanha, Alemanha e França.