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“Esse tesouro de ausências” A poesia de Ruy Espinheira Filho

ANIVERSÁRIO

Metade do tempo consumada
ou ainda mais.
No peito, a mesma fome, a mesma sede
do menino, do rapaz.
O mesmo olhar perplexo
o mesmo
sem resposta
gesto crispado interrogando.

(É dezembro
e noite e abro a janela
e vejo outras janelas iluminadas.
Ali há vida, como na rua, como
no campo e no mar e nos velozes
aparelhos que cortam o espaço
e
talvez
noutros planetas e universos.
Como há incontáveis séculos e
provavelmente
amanhã. Mas tudo rápido
demais
que nem nos podemos saber
e partimos
no mesmo escuro em que chegamos.)

Perdi colegas, namoradas, cães.
Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.
Isto o que ganhei: essas perdas. Isto
o que ficou: esse tesouro
de ausências.

(A noite avança e as janelas
aos poucos
se apagam. No silêncio
meu coração permanece
iluminado. Eis que trabalha, fiel,
mesmo quando revela
a si mesmo em breve imóvel
ou, depois, a última estrela
sem testemunhas
no céu final.)

EPIFANIA

Alguns anos não consigo
deixar nas águas do Lete:
os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete.
Muitas coisas se afogaram,
e rostos, e pensamentos,
e sonhos, e até paixões
que eram imortais...
Porém,
os meus magros dezessete
e os teus catorze morenos
não entram nem em reflexo
nesse Rio do Esquecimento.

Que magia nos levou
a um espaço e a um momento
para que de nós soubéssemos:
tu, meus magros dezessete;
eu, teus catorze morenos?
Que astúcia do Imponderável
nos abriu aqueles dias
que permanecem tão claros
como quando nos surgiram?
Eu não sei. Mas sei que a vida
nunca mais me foi vazia.

Como não foi fácil, nunca,
por tanto me visitarem
os Arcanjos da Agonia.
Pois, se fui iluminado
por estarmos lado a lado
— os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete —,
seria fatal que também
viesse a sentir a alma
em chagas multiplicadas
por setenta vezes sete.

Ah, os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete!...
Quanto sofrimento fundo
— mas quanto sonho profundo
e alto!
Que belo mundo
foi-me então descortinado,
porquanto me era dado
o privilégio preclaro
de penar de amor no claro,
no escuro, em todas as cores,
em todos os tons da vida,
dia e noite, noite e dia,
varrido ao vento das asas
dos Arcanjos da Agonia
(que eram, por algum prodígio,
os mesmos da Alegria!...).

Ah, que por mim chorem flautas,
pianos, violoncelos,
as cachoeiras, os céus
comovidos dos invernos...
Chorem, chorem, que mereço
essas lágrimas, porque
tudo sofri no mais pleno
de paraísos e infernos.
Que chorem...
Mas eu, eu mesmo,
não choro... Como chorar,
se mereci essa dádiva
de um amor doer na vida
por setenta vezes sete
mais que qualquer outra dor,
mais que qualquer outro amor?
Só me cabe agradecer,
pois a vida perderia
(e, o que ainda é mais cruel,
sem nem saber que a perdia...)
se não provasse os enredos,
insônias, febres, venenos
que em meus magros dezessete
acendeu a epifania
dos teus catorze morenos!


SONETO DO ANJO DE MAIO

Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me

o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida — e a mágoa desertou-me.

Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!

Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!


CANÇÃO MATINAL

a Ricardo Vieira Lima

Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.

E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã

orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.

Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã

é a própria alma do homem
da casa de telha-vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.


ESSA MULHER

A que nunca amei e me ama pensa em mim à noite
antes de dormir, e nos escombros do sono
vê o meu rosto suave, arrogante, de há muitos anos
e sente uma mão fria empunhar-lhe o coração.

É bela a que nunca amei e me ama, cada vez mais bela
com seus cabelos soltos ao sopro da memória,
com uma voz onde sonham luas que jamais iluminaram
um caminho que me levasse à que nunca amei e me ama.

É doce essa mulher que acorda e diz o meu nome
com unção. Seus olhos me fitam do longínquo
e doem em mim como dói nessa mulher que me ama
amar quem nunca a amou, disperso em seus enganos.

A que nunca amei e me ama acaricia a minha ausência
com pena de mim, que teria sido feliz, bem sabe,
se a tivesse amado; a ela, que me ama e nunca amei
e nunca hei de amar, como até hoje, amargamente.


CAMPO DE EROS

Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.

E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.

E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),

o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes

a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.

Amor. Do extinto pássaro, o vôo
prossegue, inexorável. Mas perdôo,

eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,

amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,

e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor

por toda parte trucidado e em flor.


SONETO DA NEGRA

a Maria da Paixão

A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.

Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.

O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela a fera.

E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.


CANÇÃO DA MOÇA E DO SONHO

a Neyla, in memoriam

Com que sonhavam, no baile,
seus olhos semicerrados?

Há mais de quarenta anos
foi tirado este retrato:

a moça em vestido casto
e luz de sonho no olhar.

Com que essa moça sonhava
nesse intervalo de baile

e de maneira tão clara
que os olhos quase fechavam?

O que — ou a quem — contemplava
o sonho no seu olhar?

Há mais de quarenta anos,
como era serena a face

voltada para esse sonho
(moça e sonho: face a face).

Que sonho nela sonhava,
e que tanto a iluminava?

Não importa. Importa a face
doce; e, nos semicerrados

olhos, a canção do sonho.
Importa que houve um sonho

e o resplendor dessa face
— antes que o tempo passasse.


CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO

A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos,
se alguém mais há não me lembro.

O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda

dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso

em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.

E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.

E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!

E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos,
sempre que sopra dezembro,

nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.


CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO

a Roniwalter Jatobá

Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.


ELEGIA DE AGOSTO

"... procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre
em teu coração".
Carlos Drummond de Andrade: "Desaparecimento de Luísa Porto".


Ali estava, cintilando
na dor
da morte de sua própria
carne,
morte
de sua própria mais preciosa carne,
aquela
de rosto
(como ele escreveria no diário)
lindo, puro, sem rugas, juvenil.

Ali, assim.
Nas velas rotas da alma não mais recolhe
o vento de Minas. Já não acolhe
o rei de Sião,
nem o menino chorando na noite,
nem Fulana
(embora tanto houvesse amado deitar-se à sombra
das moças em flor),
nem o operário,
nem
o leiteiro sutil da madrugada,
nem Clara passeando no jardim
com as crianças,
nem os heróis que cantara na construção de um mundo
que não chegara a ser: o Mundo,
o país de todo homem.

Apenas arde, agora,
a derrota incomparável.
Mãos se estendem,
abraços o envolvem,
entre cálidos sussurros compassivos.
Mas
nenhum ali é Mário,
nem Manuel,
nem Pedro,
nenhum é alguém
para essa terrível rutilância
(talvez a única companhia seja o filho
nascido sessenta anos antes
e morto instantes depois).

Ali estava. Em tempo algum
assim,
tão vácuo,
nem mesmo restavam as casas
de silêncio,
as roças
de cinzas,
a memória do Halley no céu
da infância
(cuja história fora mais bonita que a de Robinson Crusoé).

Nada restava.
Nem um botão.
Nem um rato.

Nunca antes
assim,
sob um céu vazio,
avaliando o que perdera,
e eis que tudo perdera,
e o que ainda havia

era uma dor circulando
sobre a ruína,
sobre
o que já não era vida,
sobre
o que era,
na morta e no fatal seu lado esquerdo,
apenas
barro sem esperança de escultura.


ANTIELEGIA DE AGOSTO
(1902-1987)


"... a mensagem
que ensinava a esperar, a combater,
a calar, desprezar e ter amor".
Carlos Drummond de Andrade: "Mas Viveremos"


As estações do coração cessaram
há dez anos em ti. Em nós, no entanto,
ainda se abrem com a luz do encanto
dos teus primeiros versos que pousaram

em nossa mocidade, uma oferenda
sutil, porém espessa, e nossa vida
dela embebeu-se até (hoje vivida)
a madureza, essa terrível prenda.

A nossa vida, que se fez segundo
tuas palavras. Só nos embalavam
teus versos graves, que em nós pulsavam
como um coração maior que o mundo

— ou menor, que importava? Um coração
nos corações, cantando-nos toadas
amorosas, desejos, saqueadas
montanhas, desencantos, solidão

(que — tu o disseste — é também palavra
de amor), ternuras, sonhos, ironia,
humor, em sopro vasto de poesia
que circulava em nós e ainda lavra

em nossos dias. Tua voz soava
em nossa voz. E nada se fazia
sem ela a ritmar a alegria
ou a tristeza. Tudo se cantava

segundo o Poeta, o irmão maior: assim
no bar como no baile; assim na rua
como no mangue, ao vento, ao sol, à lua;
assim na escola como no jardim

onde giravam Dulces, Beatrizes,
Rosas, Leonoras, Cármens... (e ainda estão
girando, e vão e vêm, e vêm e vão
em névoa anterior às cicatrizes

e outras memórias). Exigiam rumbas,
algumas; outras, valsas; outras, ambas
— e ainda havia as que dançavam sambas
bravos, violentos, sobre as nossas tumbas.

Ah, nunca é fácil essa dança... O amor
é isso que você está vendo: hoje
beija, amanhã não beija, depois foge
e ficamos coçando a nossa dor

de cotovelo. E então, contigo, íamos
a outras danças: em Berlim, fraternos,
entrávamos com o russo; os infernos
da guerra se evolavam; e o que ouvíamos

era uma voz falar de um tempo novo,
sem igrejas, quartéis, ouro, bandeiras,
país de todo homem, sem fronteiras:
voz da tua canção, rosa do povo.

O mundo não pesava mais que mão
de criança em nossos ombros. E as almas
eram confiantes e fitavam, calmas,
o horizonte futuro: amplidão

de esperanças. O sonho se cumpria.
Era só caminhar na claridade
e semear a terra e ter vontade
de amanhecer no azul que amanhecia.

Se assim não foi, se agora a incerteza
se alastra, pouco importa. Em nós se esconde,
e queima, um fogo — e a um grito ainda responde
outro grito, outro homem, outra certeza.

Teu coração repousa. Mas a lavra
de tua voz persiste. Em nós, ainda,
traça seu sulco fértil, que não finda
essa rosa, esse canto, essa palavra.

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