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“Falta aspenas uma letra para desvendar teu nome” Poemas de ‘faces silenciosas’ do livro do poeta Sidnei Olivio

Sidnei Olivio
Falta apenas uma letra para desvendar teu nome | Ver-O-Poema

simetrias dissonantes

em gestos imperceptíveis,
a mímica do corpo
é escultura móvel,
vazio da temporalidade
que incita o mundo:
desvio do fio que costura
na tela o filtro de luz –
aparência matinal
de um deus sonâmbulo,
espectro insone da existência
que, apenas aos bardos, se revela 
obscura tez da tempestade,
o dilúvio de uma lágrima
e a ferida que não evanesce –
cicatriz do verbo presente
na dessimétrica dança do espaço,
cósmica sedução
na borda circular da fissura.

urbanidade

I
dois espantalhos vigiam
o imprevisível da noite:
algo estranho a crescer.
nada que não se encontre
no íntimo de um acidente –
requebro de árvores, ruído 
de pedras, página 
da herança perdida
no zinabre de uma escultura
que se tornou sucata.

II
o tempo encrespa faces silenciosas –
sortilégio da última folha
do calendário – mundano
trajeto que termina
num cenário obtuso:
edifícios submersos na fumaça
abandonada por veículos
no enigma das esquinas –
lendas que confiam às ruas
pegadas de um animal incógnito.

III
dentro da metrópole 
uma outra invisível que muda
e jamais se revela
na luminosa arqueologia 
das construções históricas:
cicatrizes do corpo feito memória, 
território de confusa geografia.

factual

nada pior do que a certeza
arrisco um olho ao risco
do espaço desabitado
astronave rompendo o código
do corpo que se ampara
à borda do abismo
ensaio a aspereza 
o feito intraduzível da ave 
que se lança sobre o tempo 
dos juízos obscuros
(a tirania do voo)
e sepulta a sina
o dado o lance a luz
necessária para irradiar
acima da redondilha fóssil
o rendilhado tecido do acaso
(finas tessituras abertas à dúvida
sem o fascínio das algemas
e do encanto à liberdade póstuma)
eis o papel em branco
a mudez de passagem
fria nudez diante do vago
que forja a eternidade do grito

o que a vida encena

o murmúrio terminou sem o eco
acústico das paredes mofadas.
na penumbra do palco a trama
da noite espreita, enquanto o silêncio
envolve a plateia. não há protagonismo
nas cenas imprevistas deste drama
obstinado. quando desce o pano
tudo que o escuro revela são funduras
de um céu sem estrelas, geadas
e a surdez do universo.
os jovens estão perplexos. os velhos,
perdidos atrás dos óculos.
todos querem se afastar do tempo,
mas o tempo já estava lá, antes
de saberem que toda estrada
tem um fim
e que o último passo
pode alcançar o abismo.

tempos verbais

I
a voz que falta ao mundo
por trás da ficção:
ouço um soluço
vindo antes do vazio
das florestas extintas
e angústias declaradas
epílogo feito assombro
do passado 
dor inconfessa que ora se lança
ao vento tardio
quando janelas se fecham
à paisagem deserta

II
a dor de sentir sem dizer –
lágrimas precipitadas
no meio da estação
ressoando tremores
no intervalo de chuva e sol
a luz dissoluta
descortina a face oculta:
um poema além do verbo
que retrate o mundo
que nos falta
um poema
sob janelas serenadas –
brilho que cruza a imagem
dispersa na retina:

a escansão do verso
infenso ao silêncio.

III
quem à janela rompe sem rumo
esse nó da traqueia?
na busca de remotos avessos
as impressões de início
quando o verso é adágio:
íntimo respiro da terra
que cobre de palavras o chão 
de mudas cicatrizes.

falta uma letra apenas para desvendar teu nome

nenhuma resposta, apenas a imagem
da cordilheira coberta de neve
sobre o fundo azul impressionista,
e a citação empírica do trajeto
da escalada: um branco típico
na cabeça do Aconcágua,
com destinos solitários
e íntegra paisagem de pedras
e capins. postal sem remetente,
tuas palavras denunciaram
o medo de se perder esquecida
na planície abandonada
ou entre os fantasmas alpinistas
de almas condenadas ao frio.
eu aqui continuo intraduzível
e perpasso a encruzilhada
como quem salta estações
à vertente mágica das flores.
devo confessar, teu perfume
mistura-se ao infindável silêncio,
desde a noite de ontem e o dia
ressurgido feito rascunho
de poema, verso a verso, a colar
no chão o vaso em pedaços.

a versatilidade do molusco

“o invisível aspira a forma”
Ana Hatherly

I.
o asfalto molhado
repele a luz feito um lago
profundo, no esquecido silêncio
dos peixes. a noite
não merece estrada, apenas
arrependimentos.

II.
alguns minutos a mais
e o fato comprovado no funil 
da pista: carros tombados 
e alguns corpos cobertos 
em plástico. luzes vermelhas 
piscando desesperadamente
à lenta e curiosa fila
que beira a ilegibilidade –
olhos estendidos
ao ponto de letra.

III.
o tempo desdobra,
mimetiza o espaço e desvenda 
o sentido do gesto – enigma 
da linguagem a conquistar 
realidade: dissemelhança pervertida
do mundo que não se esgota
à margem do abismo.

IV.
um verso escapa da língua.
sentidos se perdem no percurso 
da letra. a imagem é realidade 
própria da textura do verbo – 
experiências espaciais, movimento 
de signos até o indizível
da efígie escritura
que jamais se finda.

V.
a manhã não merece consolo,
talvez arrependimentos.

reduto de Arles

girassóis forram o chão
do velho feudo
escravos-modelo do vaso amarelo
de Van Gogh
celebram com vitalidade
o símbolo áureo
em plena planície
giram insistentemente
como distantes planetas
ao redor do sol
(o sol estruge e afasta a noite
para longe das sombras)

molduras

a tarde exposta em quadros –
impressões transparentes
das retinas de aço
(lâminas que recortam
a paisagem intransponível.)
o ínfero sol do ocaso
a reluzir sua face
sob rubro vestígio
que insola o dia
trai a boca que descreve
a clareza do verso
entre o ventre do espaço
e os dentes do tempo
roendo discreta engrenagem.

Memorial

I
À margem do precipício, confirmo a impostura da paisagem. Eco de estranha logia. Sinfonia que desbrota: sementes em fuga. Árvores caducas. Insetos ametábolos. Aves de arribação. Chão aliciando o concreto, enquanto a pedra testemunha partidas.

II
Na mistura de rugas e dores escondo minha intimidade: o corpo é arrimo do tempo. Obscuro paradoxo: contar o tempo que resta e pautar a vida nos acordes do inacessível. Apenas quem percebe o instante entende a intenção da pedra.

III
Reconheço a sombra
quando vejo. A noite é, agora,
a única testemunha do poema.
(Iluminar o mundo com versos, velas e cigarros.)

IV
Há um momento em que ficamos sós com nossos vícios. Em silêncio, a noite desaba fria e indiferente sobre todas as letras.

O poema é, agora,
a única luz irredutível dos versos,
na indecisão da lua.

V
(Num dia raro, imagens prováveis do nada bastam para que a saudade suceda o primeiro vazio da manhã.)

VI
Impressões me vestem da natureza em sua presumida ruína. Vestíbulo da dor e da culpa
atravessam o remoto na rota de mórbida translação.

VII
Partilhar o impartilhável: difícil
presumir quantos momentos, mentiras
e tragédias estão guardadas na memória.

VIII
Ela escrevia meu nome
em cada frase presa
no verso de um postal:

era sua maneira de dizer o indizível
tão longe dos olhos,
tão próximo do fim.
Foto do autor

SIDNEI OLIVIO – natural de São José do Rio Preto, SP, biólogo de formação e poeta por convicção. É autor dos livros “Zoopoesia”, 1999 (em coautoria); “Poesia Animal”, 2000 (em coautoria); “Mutações”, 2002 (em coautoria); “Concretos & Abstratos”, 2003; “O limite da razão”, 2011; “Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza”, 2012; “A transgressão da palavra”, 2013; “As sete faces da cidade”, 2014; “O que desmanchamos em pedaços”, 2017; “A visão poética do abismo”, 2018; “Poesia Invertebral”, 2019 (e-book bilingue em coautoria); “Poesia é um lugar que não se revela”, 2021; “Tratado das Significações Originais”, 2022; “signos de passagem”, 2023; “Falta apenas uma letra para desvendar teu nome”, 2025. Tem ainda participação em diversas coletâneas, plaquetes, revistas, sites de literatura e e-books.

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