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Forma, conteúdo e novos horizontes: a polêmica e o barulho causados pela afirmação de Aurora Fornoni Bernardini sobre a literatura contemporânea

Introdução

Foi agorinha, em 30 de agosto de 2025, a Folha de S. Paulo publicou na Ilustríssima uma entrevista que provocou ampla repercussão no meio literário. A tradutora, crítica e professora aposentada da USP Aurora Fornoni Bernardini afirmou que autores como Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante “são interessantes, mas não literatura”. Segundo ela, literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo em detrimento da forma. A declaração gerou debates acalorados entre leitores, escritores, críticos e acadêmicos.

Essa polêmica revive uma questão histórica: o que caracteriza a literariedade? A discussão se torna ainda mais complexa ao considerarmos não apenas autores consagrados, mas também os nossos e novos escritores que surgem nas plataformas digitais.


Quem é Aurora Fornoni Bernardini?

Aurora Bernardini é uma referência intelectual no estudo de literatura comparada, tradução e crítica literária. Professora aposentada da Universidade de São Paulo, tradutora de autores russos e italianos e pesquisadora do futurismo, de Babel e de Tsvetáieva, Bernardini, aos 84 anos de idade, combina experiência acadêmica com sólida prática crítica. Suas análises históricas e literárias são reconhecidas internacionalmente, conferindo grande peso às suas observações sobre a produção literária contemporânea.


Forma versus conteúdo: o cerne da crítica

Seria correto dizer que a crítica de Bernardini se articula em três pontos essenciais?!

  1. Primazia da forma: literariedade exige trabalho estético intenso, envolvendo ritmo, invenção sintática, estratégias narrativas e exploração criativa da linguagem;
  2. Conteúdo não garante literariedade: obras que abordam temas importantes podem emocionar, mas sem rigor formal não atingem o nível da inventividade e originalidade da arte verbal;
  3. Mercado e crítica favorecem relevância temática: há percepção de que temas socialmente urgentes, ou de apelo popular deslocam o eixo de valor da literatura do “como se escreve” para o “o que se diz”.

Os autores citados se ausentaram de responder?

Até o momento, nenhum dos autores mencionados respondeu publicamente à declaração de Bernardini.

  • Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado, não se pronunciou oficialmente.
  • Annie Ernaux, Nobel de Literatura 2022, também não comentou.
  • Elena Ferrante mantém anonimato e raramente dá entrevistas.

Portanto, a controvérsia depende essencialmente da interpretação da crítica e da repercussão entre leitores e especialistas. Foi feito o barulho. Sem implicar com os reducionismo, é um barulho necessário?


As obras sob a lente da crítica

Torto Arado, Itamar Vieira Junior

Narrativa em três vozes, incorporando oralidade, memória e elementos míticos. Premiado por LeYa (2018), Jabuti (2020) e Oceanos (2020).

Annie Ernaux

Estilo seco, preciso e documental, transformando memória e experiência pessoal em literatura universal.

Elena Ferrante

Tetralogia Napolitana, narrativa de longa duração, polifonia de vozes femininas, estratégia de anonimato.


Forma e conteúdo: diálogo inevitável

Forma e conteúdo não são opostos. A forma é veículo de expressão do conteúdo, e novas estéticas surgem constantemente. A oralidade, o ritmo, a escolha do narrador e a estrutura temporal são instrumentos formais que carregam e transformam o conteúdo, seja no romance impresso ou nas novas mídias digitais. Não é isso?


Literatura digital: autores da internet e redes sociais

O debate se intensifica quando consideramos escritores digitais: autores do Wattpad, Medium, Instagram, blogs, revistas digitais, TikTok ou Twitter exploram formas adaptadas às plataformas. Threads, microcontos, poemas visuais e narrativas fragmentadas são estratégias formais específicas do meio digital.

O público digital exige brevidade (?), serialização e compartilhamento, tornando a forma parte integral da experiência literária. Muitos desses autores conquistam audiências massivas e, em alguns casos, migraram para o mercado editorial tradicional, tornando-se best-sellers. Essa realidade desafia o paradigma da crítica tradicional: formas novas exigem critérios novos.


O papel da crítica literária contemporânea

A polêmica evidencia a necessidade de atualização dos critérios críticos. O desafio é descrever o trabalho formal das obras contemporâneas sem reduzi-las a temas ou “assuntos relevantes”. É necessário analisar ritmo, cadência, escolhas sintáticas, estratégias narrativas e a relação entre forma e público, incluindo a literatura digital emergente.


Conclusão

A frase de Aurora Bernardini provocou debates intensos sobre literariedade, forma e conteúdo. A polêmica não se restringe a três autores: ela inclui toda produção contemporânea, impressa e digital. O desafio da crítica não seria tentar compreender como cada época inventa suas formas e como essas formas moldam o conteúdo, do romance premiado ao texto de redes sociais?

Sem a pretensão de demolir, edificar ou  julgar se determinada obra é “apenas conteúdo” ou “verdadeira literatura”, a tarefa não seria entender como linguagem, forma e conteúdo se entrelaçam para reinventar a literatura em cada geração?


Referências

  1. Entrevista de Aurora Fornoni Bernardini, Folha de S.Paulo (Ilustríssima, 30/08/2025).
  2. Walnice Nogueira Galvão, Folha de S.Paulo, maio de 2025: “Conteúdo predomina sobre a forma na literatura brasileira de hoje”.
  3. Torto Arado, Itamar Vieira Junior — premiações: LeYa (2018), Jabuti (2020), Oceanos (2020).
  4. Annie Ernaux — Nobel de Literatura 2022, discursos e entrevistas públicas.
  5. Elena Ferrante — Frantumaglia (compilação de entrevistas e reflexões sobre estilo e autoria).
  6. Roman Jakobson, Lingüística e Poética (ensaios sobre função poética e forma literária).
  7. Viktor Shklovsky, Arte como técnica (formalismo russo).

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