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‘Herzog: nunca mais aquele sábado’, por Flávio Viegas Amoreira

Um cinzento sábado típico de São Paulo, numa soturna primavera. Mais um shabat para o jornalista, cineasta, intelectual, humanista pleno Vladimir Herzog. Seria seu último.

Vladimir Herzog, jornalista e intelectual brasileiro, retratado em foto histórica

Depois de uma intensa semana como diretor da TV Cultura, o marido de Clarice e pai de Ivo e André substituiu o convívio com a família no sítio em Bragança, entre a criação de patos, pombas e flores e a paixão pela fotografia, para se apresentar ao famigerado DOI-Codi, na Rua Tutóia, 921. Prestaria depoimento sobre ligações antigas com o PCB. Saiu morto, depois de um suicídio forjado e evidentes sinais de tortura.

O culto ecumênico na Catedral da Sé, em sua memória, foi o ponto de virada da ditadura cívico-militar, carcomida pela crise econômica, descalabros faraônicos e um saldo de milhares de exilados e desaparecidos. O Partidão já adotara, fazia tempo, decisão contra a luta armada, que começara heroica, desandando em estratégia funesta ao martírio.

Nada mais distante de um Marighella ou Lamarca que o imigrante croata que fugira do nazismo para sucumbir a um regime nascido num 1º de abril e que durou 20 anos. Ressalta-se que a ditadura não foi tão somente militar. O DOI-Codi era em muito financiado pela Operação Oban, que reunia endinheirados para bancar sua fábrica de horrores. Convido o caro leitor a assistir ao documentário Cidadão Boilesen, sobre um executivo estrangeiro fazendo as vezes de um Goering ou Himmler brasileiro.

É de extrema importância evocar que o Exército foi instado a “investigar” nossa preciosa TV pública a partir de um discurso violento do deputado José Maria Marin na Assembleia, acusando a redação da TV Cultura de infiltração subversiva. Marin, de triste trajetória por corrupção internacional e doméstica, é típico personagem da hipocrisia reacionária.

Para os padrões do regime, o governador Paulo Egydio era liberal demais e tinha como secretário de Cultura um dos nossos mais dignos personagens desse mesmo universo tão odiado pela direita, a Cultura: o imenso José Mindlin. O general Geisel sentira que a insânia dos porões havia chegado ao limite e peitou a linha dura comandada por Sylvio Frota, num cabo de guerra que ainda ecoa num país pobremente dado a recaídas antidemocráticas.

O assessor de Frota era um jovem coronel chamado Heleno, e Geisel depararia com um tresloucado capitão Jair, a quem se referia como “mau militar”. Como diz Ivan Herzog, 50 anos depois, aos que falam em “virar a página”, é preciso primeiro escrever a página, como alerta para quem, no 8 de janeiro, quase caiu na mesma atmosfera que redundou no assassinato de Herzog.

É preciso lembrar dos tresloucados episódios de justiçamento na luta armada de resistentes de esquerda, que não resultariam nem um milímetro no recuo da ditadura. Mas é preciso ressaltar também que Rubens Paiva, Herzog e o operário Manoel Fiel Filho foram trucidados por agentes do Estado.

Estado tomado de assalto, de maneira ilegítima, e sua tutela sem voto direto, sob censura e sob a égide do terror, enfatizo, de Estado.

Juscelino anistiou militares envolvidos em duas tentativas de golpe, os mesmos que planejariam 64. Um deles, chegando às raias da psicopatia, urdiria a explosão do gasômetro do Rio, que resultaria em milhares de vítimas, incriminando a esquerda para um banho de sangue entre opositores. Era o brigadeiro Burnier.

A Operação Para-Sar foi evitada pela ação de verdadeiros militares, desde o capitão Sérgio Macaco até o venerando brigadeiro Eduardo Gomes. Sempre destacar: há militares e militares.

Shalom, Herzog.

Flávio Viegas Amoreira
25 de outubro de 2025

Foto do autor

Flávio Viegas Amoreira, nascido em Santos em 1965, é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Ao longo de sua carreira, foi parceiro estético de importantes compositores, como Gilberto Mendes e Livio Tragtenberg, com quem desenvolveu projetos de integração entre literatura e música. Em 2022, por ocasião do centenário de Gilberto Mendes, o escritor publicou uma biografia em homenagem ao músico e maestro santista. Ativo como agitador cultural, desenvolve projetos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Litoral Paulista, promovendo discussões sobre artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Sua produção literária inclui 14 livros, entre eles Maralto, A Biblioteca Submergida, Contogramas, Escorbuto, Cantos da Costa, Edoardo, o Ele de Nós, Oceano Cais, Desaforismos e Pessoa doutra margem. Amoreira também participou de diversas antologias de poesia e conto, incluindo Geração Zero Zero, que reúne escritores inovadores lançados na primeira década do século XXI, organizada pelo crítico Nelson de Oliveira.[5] No teatro, além de atuar como dramaturgo, concedeu uma polêmica entrevista ao diretor Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, onde discutiu temas relevantes para a literatura e a cultura brasileira. Seu engajamento nas universidades, nas revistas, nas redes sociais e na criação de arte digital destaca-se, reafirmando-o como uma das figuras mais dinâmicas da Novíssima Literatura Brasileira. Flávio Viegas Amoreira é associado ao movimento cultural santista que surgiu no final dos anos 70 e início dos anos 80, período marcado por desafios na cena artística e política pós-abertura do regime militar. Seu trabalho é caracterizado por uma profunda ligação com a geografia de Santos, cidade que inspira sua poesia e sua crítica social, frequentemente permeada por metáforas marítimas e um olhar atento às transformações culturais. Ao longo de sua carreira, Amoreira também atuou como professor em oficinas literárias. Em 2024, Flávio Viegas Amoreira foi eleito para a Academia Santista de Letras (ASL), ocupando a cadeira 25, cujo patrono é o poeta Vicente de Carvalho, consolidando sua influência no cenário literário. Flavio Viegas Amoreira tem se dedicado ao resgate de artistas ligados à cidade de Santos, destacando sua importância na literatura brasileira. Em 2024, organizou Vicente de Carvalho redescoberto (Editora Costelas Felinas), publicado no centenário da morte do poeta. Atualmente, Flávio Viegas Amoreira é colunista do jornal santista A Tribuna.

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