Homem consertando rede e outros poemas de Zangareio
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HOMEM CONSERTANDO REDE
[para meu pai]
Homem consertando rede
agulha na mão
rede pendurada no prego.
Homem consertando rede
pensa na importância do remendo
imagina que tipo de peixe fugiria
por aquele buraco.
Homem consertando rede
conserta seu mundo.
Homem sério
enche a agulha com linha vermelha
com total habilidade
espanta o borrachudo
cospe o náilon mascado
dá palpites sobre o tempo que tanto acertava.
Ainda é respeitado quando fala que chove
quando fala que vai ventar.
Homem consertando rede
não resmunga a vida
malha pela falta de peixe
os grandes barcos de arrasto.
Homem consertando rede
conta histórias de pescador
com tamanha sinceridade
que nem parece pescador.
Homem consertando rede
parece homem feliz, distante
vai medindo a braçadas seu silêncio,
sua vontade de viver.
Homem consertando rede
e somente agora, para mim,
meu pai é apenas um homem
que conserta sua rede.
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ENQUANTO AS CRIANÇAS DORMEM
Havia medo detrás da porta
mas não há mais.
As crianças dormem
sobre lençóis de linho.
O rangido das cremonas
e o mundo sem luz alguma
das lâmpadas são como dias de vento
balançando as árvores.
Jamais na vida o medo irá tirar
o momento dos sonhos, não agora.
A sombra do triciclo sem rodas
projeta um velho de cócoras
a contar talvez a própria estória.
O amanhã baterá na janela
e os móveis terão nitidez.
Uma sombra se esconderá
debaixo do tapete cinza.
Outra, dentro da chaleira.
Os parentes sacudindo os esqueletos,
o milho sendo jogado às aves.
Depois, rodeadas à mesa
as meninas impressionando a todos,
contando os sonhos
que não sonharam.
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QUINHÃO
À mesa, como num tribunal
sob o juízo de nossa mãe
disputávamos, com fervor,
os melhores pedaços
da magra galinha.
As irmãs menores,
cada qual com suas asas,
balbuciavam qualquer coisa
de bom
voando entre os dentes.
O impasse era sempre
com as coxas.
Duas
para três admiradores.
Fora o confronto
tomei predileção
por peitos.
O que Freud explicaria
com a teoria das perdas.
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AS CRENÇAS INFANTIS
Eu era menino como todos foram ou são
e sob as barras do manto
de Santa Tereza Justafé fui criado
-mudo de opinião.
Menino descozido de crenças
mas tradicionalmente religioso
(rezava aves e pais).
Trocava a água das flores
rosas brancas e encarnadas contrastavam
com o local lúgubre
onde o ranço de velas impregnava
as fotografias dos enfermos.
Tudo naquela casa se prostrava
aos pés de porcelana queimada
de Santa Tereza Justafé.
Vó Coralina antes de deixar morrer
o símbolo majesto
da matriarca que era,
tinha por desejo supremo
ser enterrada com a santa
- e foi.
Naquela mesma noite
arrebentaram-me a boca
pois como esperavam o consentimento
de um menino-anjo
achei que seria muito justo
que os mortos fossem enterrados
com seus mortos.
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BILHETE SOBRE A CAMA
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco.
Vou em silêncio
como quem não incomoda.
Vou sem rodeios
como o trem que não espera.
O que tive devolve
reparte
barganha.
O que fiz esqueça
relembre
perdoe.
O que fui diga aos outros
que tentei ser melhor.
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco
cuida do cão.
Não se mate em saudades,
com você fica meu abraço
fica minha saliva em tua boca
o que sinto é que não posso ficar.
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco
cuida do cão.
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MULHER AMARGA SEGUINDO CORTEJO
De terço nas mãos e alma compungida
renega o deus que roubou o marido
enforcando as contas de madrepérola.
Reprime o céu belo em azul infinito.
Roga que sobre o resto de seus dias
a monção violeta de trevas cubra a noite
feito manto de lamento.
O caminhar contido como o andar servil
de uma pagadora de promessas.
Andarilha que nega a remissão da paga
pois não é fé de romeira
mas descabelo de louca.
O olhar infeccionado, ardil em pus,
putrefaz quem o encara.
Dela fogem todas as raças de cães
a uivar desembestados.
Segue sem pestanejar
como se não restassem caminhos
mas a precisão dos passos.
É notório o choro que balbucia pequeno.
Prestam-lhe pêsames e se condoem
pelo fatídico episódio de dor
porém não há quem não afirme,
em silêncio,
a sua preferência pelo morto.
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O HOMEM QUE PRENDEU A ESTRELA
Com as têmporas repletas de incertezas
e de andar inexato
segue trôpego
o homem com um colar de estrela nas mãos.
Quando voava com as asas dos beijos
e o coração feito um mineral singular de beleza,
de cantar fácil
e que via o riso em tudo
não enrodilhava nas mãos o colar
feito algema dos iludidos caminhos da vida.
O colar como um pêndulo
trespassado pelo longevo fixar
de seus olhos
de cor já alterada.
Padece.
E pelo arfar expelido comunga sua tristeza em tudo
que o rodeia.
Pouco importa o mar e seus domínios.
Mira o colar,
logo prende a estrela,
por entre seus dedos
de céu.
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