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Homem consertando rede — poemas de Zangareio, por Flávio de Araújo

Homem consertando rede e outros poemas de Zangareio

Flavio de Araujo - imagem para Ver-O-Poema
Flavio de Araújo — Ver-O-Poema

HOMEM CONSERTANDO REDE

[para meu pai]
Homem consertando rede
agulha na mão
rede pendurada no prego.
Homem consertando rede
pensa na importância do remendo
imagina que tipo de peixe fugiria
por aquele buraco. 
Homem consertando rede 
conserta seu mundo.

Homem sério
enche a agulha com linha vermelha 
com total habilidade
espanta o borrachudo 
cospe o náilon mascado
dá palpites sobre o tempo que tanto acertava. 
Ainda é respeitado quando fala que chove 
quando fala que vai ventar.

Homem consertando rede 
não resmunga a vida 
malha pela falta de peixe
os grandes barcos de arrasto.

Homem consertando rede 
conta histórias de pescador 
com tamanha sinceridade 
que nem parece pescador.

Homem consertando rede 
parece homem feliz, distante
vai medindo a braçadas seu silêncio, 
sua vontade de viver.

Homem consertando rede
e somente agora, para mim, 
meu pai é apenas um homem 
que conserta sua rede.
      

ENQUANTO AS CRIANÇAS DORMEM

Havia medo detrás da porta 
mas não há mais.
As crianças dormem 
sobre lençóis de linho.

O rangido das cremonas
e o mundo sem luz alguma 
das lâmpadas são como dias de vento
balançando as árvores.

Jamais na vida o medo irá tirar
o momento dos sonhos, não agora.

A sombra do triciclo sem rodas 
projeta um velho de cócoras
a contar talvez a própria estória.
O amanhã baterá na janela 
e os móveis terão nitidez. 
Uma sombra se esconderá 
debaixo do tapete cinza.
Outra, dentro da chaleira.
Os parentes sacudindo os esqueletos,
o milho sendo jogado às aves.

Depois, rodeadas à mesa
as meninas impressionando a todos, 
contando os sonhos
que não sonharam.
      

QUINHÃO

À mesa, como num tribunal 
sob o juízo de nossa mãe 
disputávamos, com fervor, 
os melhores pedaços
da magra galinha.

As irmãs menores,
cada qual com suas asas, 
balbuciavam qualquer coisa 
de bom
voando entre os dentes.

O impasse era sempre 
com as coxas.
Duas
para três admiradores.

Fora o confronto 
tomei predileção 
por peitos.

O que Freud explicaria 
com a teoria das perdas.
      

AS CRENÇAS INFANTIS

Eu era menino como todos foram ou são 
e sob as barras do manto
de Santa Tereza Justafé fui criado
-mudo de opinião.

Menino descozido de crenças 
mas tradicionalmente religioso 
(rezava aves e pais).

Trocava a água das flores
rosas brancas e encarnadas contrastavam 
com o local lúgubre
onde o ranço de velas impregnava 
as fotografias dos enfermos.
Tudo naquela casa se prostrava 
aos pés de porcelana queimada 
de Santa Tereza Justafé.

Vó Coralina antes de deixar morrer 
o símbolo majesto
da matriarca que era, 
tinha por desejo supremo 
ser enterrada com a santa

- e foi.

Naquela mesma noite 
arrebentaram-me a boca
pois como esperavam o consentimento 
de um menino-anjo
achei que seria muito justo
que os mortos fossem enterrados 
com seus mortos.
      

BILHETE SOBRE A CAMA

Eu vou
não me siga
eu creio na vida 
tive felicidade
amores muito pouco.

Vou em silêncio
como quem não incomoda.
Vou sem rodeios
como o trem que não espera.

O que tive devolve 
reparte
barganha.

O que fiz esqueça 
relembre
perdoe.

O que fui diga aos outros 
que tentei ser melhor.

Eu vou
não me siga
eu creio na vida 
tive felicidade
amores muito pouco 
cuida do cão.

Não se mate em saudades, 
com você fica meu abraço 
fica minha saliva em tua boca
o que sinto é que não posso ficar.

Eu vou
não me siga
eu creio na vida 
tive felicidade
amores muito pouco 
cuida do cão.
      

MULHER AMARGA SEGUINDO CORTEJO

De terço nas mãos e alma compungida 
renega o deus que roubou o marido 
enforcando as contas de madrepérola. 
Reprime o céu belo em azul infinito.
Roga que sobre o resto de seus dias
a monção violeta de trevas cubra a noite 
feito manto de lamento.
O caminhar contido como o andar servil 
de uma pagadora de promessas.
Andarilha que nega a remissão da paga 
pois não é fé de romeira
mas descabelo de louca.
O olhar infeccionado, ardil em pus, 
putrefaz quem o encara.
Dela fogem todas as raças de cães 
a uivar desembestados.
Segue sem pestanejar

como se não restassem caminhos 
mas a precisão dos passos.
É notório o choro que balbucia pequeno. 
Prestam-lhe pêsames e se condoem 
pelo fatídico episódio de dor
porém não há quem não afirme, 
em silêncio,
a sua preferência pelo morto.
      

O HOMEM QUE PRENDEU A ESTRELA

Com as têmporas repletas de incertezas 
e de andar inexato
segue trôpego
o homem com um colar de estrela nas mãos.

Quando voava com as asas dos beijos
e o coração feito um mineral singular de beleza, 
de cantar fácil
e que via o riso em tudo
não enrodilhava nas mãos o colar
feito algema dos iludidos caminhos da vida.

O colar como um pêndulo 
trespassado pelo longevo fixar 
de seus olhos
de cor já alterada.

Padece.

E pelo arfar expelido comunga sua tristeza em tudo
que o rodeia.
Pouco importa o mar e seus domínios. 

Mira o colar,

logo prende a estrela, 
por entre seus dedos 
de céu.
      

[Todos os poemas são de Zangareio]

Foto do autor

Flávio de Araújo, caiçara, filho de uma família de pescadores da Praia do Sono – Paraty/RJ. Em 2008 publicou pelo Selo Off Flip seu livro de estreia (Zangareio) participando como autor convidado em diversos festivais no Brasil e exterior. Tem poemas publicados em coletâneas, sites e revistas literárias, entre elas Jornal de Poesia, Germina, Washington Square Review (EUA), Jornal de Poesia, Revista Mānoa – Hawaii e e Fleurs des lettres (República Popular da China).

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