A poesia de Luíza Mendes Furia reúne delicadeza, intensidade sensorial e uma escuta profunda do mundo interior. Em Esculpir conchas, a poeta aproxima o gesto do mar ao gesto da escrita: assim como os moluscos moldam conchas diversas e secretas, o fazer poético é um trabalho contínuo, paciente e quase artesanal. Essa imagem inicial revela o núcleo de sua obra. A criação como forma de revelar o que o tempo e a sensibilidade depositam lentamente no espírito.
Em Verão, o olhar volta-se ao corpo e às temperaturas da existência. A manhã explode numa “bolha de tempo incandescente”, irradiando dor e luminosidade. Só a noite, “cataplasma translúcido”, devolve calma ao organismo, compondo um poema que transita entre ardor e alívio, entre excesso e cura.
Em Saudade, a poeta dialoga com Pessoa para falar de ausência como travessia marítima. A cidade torna-se oceano, a memória torna-se ancoradouro, e a emoção ergue-se como um cântico que se dissolve na madrugada. A linguagem é suave, mas carregada de atmosfera e movimento.
Já os poemas XXI e XXIII revelam a vertente erótica da autora: imagens de flor, chama, fruto e vinho constroem uma corporeidade ardente. O desejo conduz ao renascimento, como a fênix que repousa após o incêndio.
POEMA-1
Esculpir conchas
tão delicadas
e diversas
é um segredo do mar
e dos moluscos.
Fazer versos
como quem esculpe conchas
um desafio interminável
ininterrupto.
VERÃO
Às vezes
é assim a manhã:
bolha de Tempo
que explode
incandescente.
Dói e queima
o dia todo.
O corpo
só se acalma
quando adere à pele
o cataplasma translúcido da noite.
em Inventário da Solidão (1998)
SAUDADE
O teu silêncio é uma nau com
todas as velas pandas
Fernando Pessoa
É frágil o coração que cruza a noite
e as naves atracadas no silêncio
Pra onde quer que vá existe um rumo
nesta cidade-oceano de mil bússolas
Ancora na memória um teu sorriso
E a saudade murmura sem que escutes
A voz do marinheiro visionário
sobe em estrela e se desfaz em nuvem
Veloz a madrugada foge em sombras
e voa esta canção que te procura
A alma é um jardim abandonado
ao ar do outono e à algidez das ruas
em Inventário da Solidão (1998)
XXI
Tua língua
é chama e pétala
na minha boca
Uma orquídea
rósea e fulva
se alastra no meu ventre
Selvagem e pura
no meu corpo
te enraízas.
XXIII
Pões no meu lábio a cor escura das cerejas
Eu coloco a língua purpúrea nos teus lábios
para colher a fruta oculta no teu ventre
embebedar-me da doçura do seu sumo.
Então derramas vinho em minha boca
depois lambes o rubro dos meus seios
e há um roçar de pétalas vermelhas
transmutando seu perfume em chamas lentas
Até que irrompa o incêndio na penumbra
e suba, incontrolável, um grito ardente.
Depois, tudo serena em meio às cinzas
e mergulhamos no sono oloroso e fundo
com que os deuses presenteiam suas fênix.
- Luíza Mendes Furia — Esculpir conchas, Verão, Saudade e outros poemas
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