Leituras: 21

Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos tão vazios, Nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, Tão paradas e frias e mortas; Eu não tinha este coração Que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: – Em que espelho ficou perdida a minha face? (Obra poética, Volume 4, Biblioteca luso-brasileira: Série brasileira. Companhia J. Aguilar Editora, 1958, p. 10) Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada. * Timidez Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve… – mas só esse eu não farei. Uma palavra caída das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes… – palavra que não direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos, – que amargamente inventei. E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando nos ares certos do tempo, até não se sabe quando… e um dia me acabarei. * Primeiro Motivo da Rosa Vejo-te em seda e nácar, e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera, toda a Beleza em lágrimas por ser bela e ser frágil. Meus olhos te ofereço: espelho para face que terás, no meu verso, quando, depois que passes, jamais ninguém te esqueça. Então, de seda e nácar, toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero o rosto meu, nas lágrimas do teu orvalho… E frágil. * Leveza Leve é o pássaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta, mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve. E o desejo rápido desse mais antigo instante, mais leve. E a fuga invisível do amargo passante, mais leve. * Inscrição na Areia O meu amor não tem importância nenhuma. Não tem o peso nem de uma rosa de espuma! Desfolha-se por quem? Para quem se perfuma? O meu amor não tem importância nenhuma. ( Cecília Meireles ) Noções Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos. Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram. Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a. Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza. Ó meu Deus, isto é minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera… * Canção Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; – depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio… Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perfeito; praia lisa, águas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas. * Quarto Motivo da Rosa Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Rosas verá, só de cinzas franzida, mortas, intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim. * Discurso E aqui estou, cantando. Um poeta é sempre irmão do vento e da água: deixa seu ritmo por onde passa. Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operários de Babel. Pois aqui estou, cantando. Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute? Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim? * Reinvenção A vida só é possível reinventada. Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas… Ah! tudo bolhas que vem de fundas piscinas de ilusionismo… — mais nada. Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura. Não te encontro, não te alcanço… Só — no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva. Só — na treva, fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. * Máquina Breve O pequeno vaga-lume com sua verde lanterna, que passava pela sombra inquietando a flor e a treva — meteoro da noite, humilde, dos horizontes da relva; o pequeno vaga-lume, queimada a sua lanterna, jaz carbonizado e triste e qualquer brisa o carrega: mortalha de exíguas franjas que foi seu corpo de festa. Parecia uma esmeralda e é um ponto negro na pedra. Foi luz alada, pequena estrela em rápida seta. Quebrou-se a máquina breve na precipitada queda. E o maior sábio do mundo sabe que não a conserta. * Cântico VI Tu tens um medo: Acabar. Não vês que acabas todo o dia. Que morres no amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que te renovas todo o dia. No amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que és sempre outro. Que és sempre o mesmo. Que morrerás por idades imensas. Até não teres medo de morrer. E então serás eterno. * Marcha As ordens da madrugada romperam por sobre os montes: nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes. Apenas o sol redondo e alguma esmola de vento quebram as formas do sono com a idéia do movimento. Vamos a passo e de longe; entre nós dois anda o mundo, com alguns mortos pelo fundo. As aves trazem mentiras de países sem sofrimento. Por mais que alargue as pupilas, mais minha dúvida aumento. Também não pretendo nada senão ir andando à toa, como um número que se arma e em seguida se esboroa, – e cair no mesmo poço de inércia e de esquecimento, onde o fim do tempo soma pedras, águas, pensamento. Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste: mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste. Mesmo assim amarga, é tudo que tenho, entre o sol e o vento: meu vestido, minha música, meu sonho e meu alimento. Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudade; tenho visto muita coisa, menos a felicidade. Soltam-se os meus dedos ristes, dos sonhos claros que invento. Nem aquilo que imagino já me dá contentamento. Como tudo sempre acaba, oxalá seja bem cedo! A esperança que falava tem lábios brancos de medo. O horizonte corta a vida isento de tudo, isento… Não há lágrima nem grito: apenas consentimento. * Canção Mínima No mistério do sem-fim equilibra-se um planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro, entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma borboleta
Autor
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Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no Rio de Janeiro, dia 7 de novembro de 1901. Foi criada pela sua avó católica e portuguesa da ilha dos Açores. Isso porque seu pai havia morrido três meses antes de seu nascimento e sua mãe quando tinha apenas 3 anos. Desde pequena recebeu uma educação religiosa e demonstrou grande interesse pela literatura, escrevendo poesias a partir dos 9 anos de idade. Cursou a Escola Estácio de Sá, concluindo com “distinção e louvor” o curso primário em 1910. Tornou-se professora diplomando-se no “Curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro”.
Em 1919, com apenas 18 anos, publicou sua primeira obra de caráter simbolista, “Espectros”. Com 21 anos, casa-se com o pintor português Fernando Correa Dias que sofria de depressão e suicidou-se em 1935.Casa-se novamente com o engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo, cinco anos depois da morte de seu primeiro marido e com quem teve três filhas. Sua atuação na área da educação não ficou restrita às salas de aula. Isso porque de 1930 a 1931, Cecília trabalhou como jornalista no "Diário de Notícias" contribuindo com textos sobre problemas da educação. Cecília ficou reconhecida mundialmente, uma vez que suas obras foram traduzidas para muitas línguas. Pelo trabalho realizado na literatura ela recebeu diversos prêmios, dos quais se destacam: Prêmio de Poesia Olavo Bilac Prêmio Jabuti Prêmio Machado de Assis
Além disso, realizou palestras e conferências sobre educação, literatura brasileira, teoria literária e folclore, em diversos países do mundo. Cecília falece ao entardecer, na sua cidade natal, no dia 9 de novembro de 1964. Tinha 63 anos e morreu vítima de câncer. Curiosidades sobre Cecília Meireles Em 1934, Cecília Meireles funda a primeira Biblioteca Infantil do Brasil, no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. No Chile, foi inaugurada a “Biblioteca Cecília Meireles” em 1964 na província de Valparaíso. Em 1953, Cecília Meireles foi agraciada com o título de “Doutora Honoris Causa” pela Universidade de Déli, na Índia.
Principais obras de Cecília MeirelesCom uma obra intimista e densamente feminina, Cecília Meireles foi uma escritora muito prolífica, escreveu muitas poesias, incluso, poesias infantis: Espectros (1919) Criança, meu amor (1923) Nunca mais... e Poemas dos Poemas (1923) Criança meu amor... (1924) Baladas para El-Rei (1925) O Espírito Vitorioso (1929) Saudação à menina de Portugal (1930) Batuque, Samba e Macumba (1935) A Festa das Letras (1937) Viagem (1939) Vaga Música (1942) Mar Absoluto (1945) Rute e Alberto (1945) O jardim (1947) Retrato Natural (1949) Problemas de Literatura Infantil (1950) Amor em Leonoreta (1952) Romanceiro da Inconfidência (1953) Batuque (1953) Pequeno Oratório de Santa Clara (1955) Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro (1955) Panorama Folclórico de Açores (1955) Canções (1956) Romance de Santa Cecília (1957) A Bíblia na Literatura Brasileira (1957) A Rosa (1957) Obra Poética (1958) Metal Rosicler (1960) Poemas Escritos na Índia (1961) Poemas de Israel (1963) Solombra (1963) Ou Isto ou Aquilo (1964) Escolha o Seu Sonho (1964)