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Na Última Vez em Que Lilases no Pátio Floriram: A Elegia de Walt Whitman para Lincoln

Retrato de Walt Whitman, poeta e autor da elegia
Walt Whitman
Imagem que representa o tradutor ou o tema da Guerra de Secessão
Contexto da Elegia

O tradutor Adriano Scandolara, na revista *Escamandro*, nos diz que “basicamente, ele consiste numa elegia à morte do presidente **Abraham Lincoln** (ainda que ele não seja nomeado diretamente), oficializando literariamente este verdadeiro culto mitológico que o povo dos EUA tem aos seus principais presidentes. Lincoln, tendo guiado os ianques contra os confederados na Guerra Civil, é assassinado em abril de 1865. Daí os três principais elementos sobre os quais o poema se concentra, na medida em que o poeta associa a morte do presidente à primavera e, consequentemente, às suas implicações míticas de morte e renascimento: o **tordo**, que canta no pântano uma canção lúgubre, a **estrela** que pende (Vênus, que brilha mais nesse período) e os **lilases**, que florescem na primavera.”

Na Última Vez em Que Lilases no Pátio Floriram

(Original: “When Lilacs Last in the Dooryard Bloom’d”, por Walt Whitman)

1

Na última vez em que lilases no pátio floriram

E a grande estrela cedo pendia no oeste do céu noturno,

Pus o luto – e continuarei em luto pela primavera de eterno retorno.

Ó, primavera de eterno retorno! certo tua trindade vem ao meu entorno;

Lilás a florir perene, e a estrela a pender no oeste,

E pensar naquele que amo.

2

Ó, poderosa estrela caída do oeste!

Ó, vultos da noite! Ó, noite lúgubre e triste!

Ó, grande estrela desaparecida! Ó, a treva escura que esconde a estrela!

Ó, mãos crueis que me rendem sem forças! Ó, minh’alma indefesa!

Ó, nuvem áspera que me envolve e não liberta minh’alma!

3

No pátio em frente a uma velha casa de campo, perto das cercas caiadas,

Se encontra o arbusto dos lilases, alto e crescido, com folhas de faustoso verde em coração

Com flores várias, a elevar, delicado, o forte perfume que amo,

Com cada folha um milagre……e desse arbusto no pátio,

Com flores de cores delicadas e folhas de faustoso verde em coração,

Um ramo, com flor, eu tiro.

4

No pântano, em recessos reclusos,

Um pássaro tímido e oculto trina uma canção.

Solitário, o tordo,

O eremita, ensimesmado, evitando os acampamentos,

Canta sozinho uma canção.

Canção da garganta que sangra!

A vazão da morte na canção da vida – (pois bem, caro irmão, eu sei

Que se não tivesses o dom do canto, por certo morrerias.)

5

Sobre o seio da primavera, a terra, entre cidades,

Entre alamedas e por antigos bosques, (onde há pouco as violetas vieram espiar do solo, malhando os cinzentos destroços;)

Entre a relva nos campos dos dois lados das alamedas – passando a relva infindável;

Passando a lança amarela do trigo, cada grão a erguer-se de seu sudário nos campos pardos;

Passando a golpes da macieira de branco e rosa nos pomares;

Carregando um corpo até onde repousará no túmulo,

Noite e dia viaja um caixão.

6

Caixão que passa por alamedas e ruas,

Dia e noite, com a grande nuvem a ensombrecer a terra,

Com a pompa das bandeiras arriadas, com cidades vestidas de preto,

Com o desfile dos próprios Estados, como das mulheres em véus crepe, de pé,

Com procissões longas e sinuosas e os círios noturnos,

Com as incontáveis tochas acesas – com mar silente de rostos, e as cabeças desnudas,

Com o depósito à espera, o caixão a chegar, e as faces sombrias,

Com as elegias ao longo da noite, com mil vozes a se erguer, solenes e fortes;

Com todas as elegíacas vozes dos enlutados, despejadas ao redor do caixão,

Com as igrejas à penumbra e os trêmulos órgãos – Por esse meio você viaja,

Com o dobrar, o dobrar dos sinos, seu perpétuo tinido;

Aqui! caixão que lento passa

Dou-lhe o meu ramo de lilases.

7

(Não para você, para um só, apenas;

Flores e verdes ramos a todos os caixões eu trago:

Pois renovado como a aurora – assim entoaria eu uma canção a você, Ó, sã e sacra morte.

Sobre buquês de rosas,

Ó, morte! Eu lhe cubro de rosas e os primeiros lírios;

Mas principalmente e agora floriu o lilás primeiro,

Copioso, eu tiro, tiro os ramos dos arbustos;

Com braços cheios eu venho, lançando-os por você,

Por você e todos os caixões seus, Ó, morte.)

8

Ó, orbe do oeste, a velejar os céus!

Agora sei o que você quis dizer, que faz um mês desde que caminhamos,

Que caminhamos para cima e para baixo no azul escuro e místico,

Que caminhamos em silêncio pela noite sombria e transparente,

Que eu vi que você tinha algo a dizer, no que você se dobrava a mim, noite após noite,

Que você pendia baixa no céu, como se para o meu lado (sob o olhar de todas as outras estrelas;)

Que vagamos juntos a noite solene, (pois algo, não sei o quê, não me deixava dormir;)

Que a noite foi avançando, e eu vi nas beiradas do oeste, antes de você partir, como estava tão cheia de pesares;

Que eu estava sobre o solo a se elevar na brisa, na noite fria e transparente,

Que eu vi por onde você passou e se perdeu no ínfero escuro da noite,

Que minha alma em seu transtorno, insatisfeita, afundou-se como você, triste orbe,

Concluiu, caiu na noite e sumiu.

9

Continua a cantar, lá no pântano!

Ó, cantor acanhado e terno! Ouço suas notas – ouço seu chamado;

Ouço – e venho depressa – eu lhe entendo;

Mas por um momento demoro – pois a estrela lustrosa me detém;

A estrela, meu camarada que parte, me mantém e detém.

10

Ó, como trinarei meu peito pelo morto que amei?

E como talharei meu canto pela enorme e doce alma que partiu?

E o que deverá ser meu perfume, pelo túmulo de quem amo?

Maresias, a soprar leste e oeste,

A soprar do mar do leste e a soprar do mar do oeste, até lá nas pradarias se encontrarem:

Elas, e com elas, o alento de meu canto,

O perfume do túmulo de quem amo.

11

Ó, onde as pendurarei nas paredes da câmara?

E quais serão as imagens que pendurarei nas paredes,

Para adornar o mausoléu de quem amo?

Imagens de medras da primavera, e lares, e sítios,

Com a tarde do quarto mês a se pôr, e a cinzenta fumaça lúcida e clara,

Com enxurradas do ouro amarelo do sol indolente e belo a afundar, ardendo e expandindo os ares;

Com ervas frescas e doces sob os pés, e folhagem verde e pálida abundante nas árvores;

Na distância o brilho fluido, o seio do rio, com ôndulas aqui e ali;

Com colinas a estender-se das margens, com linhas várias contra o céu, e sombras;

E a cidade à mão, com moradas tão densas e pilhas de chaminés,

E todas as cenas da vida, e as oficinas, e os trabalhadores às casas retornando.

12

Vede! corpo e alma! esta terra!

Poderosa Manhattan, com suas cúspides, e, apressadas, as marés faiscantes, e os navios;

A terra variada e ampla – o Sul e o Norte à luz – as margens de Ohio, e o Missouri a brilhar,

E as pradarias se estendendo ao longe, cobertas de relva e milharais.

Vede! o excelentíssimo sol, tão calmo e altivo;

A aurora púrpura e violeta, com brisas recém-sentidas;

A luz gentil e suave, imensurável;

O milagre, a espalhar-se, banhando a todos – o zênite realizado;

A tarde por vir, deliciosa – a noite bem-vinda, e as estrelas,

Sobre minhas cidades iluminando todas, envolvendo homem e terra.

13

Canta! canta, pássaro cinzento e pardo!

Canta dos pântanos, dos recessos – despeja seu canto dos arbustos;

Ilimitado, pelo ocaso, pelos cedros e pinheiros.

Canta, caríssimo irmão – trina sua canção flautada;

Alta canção humana, com voz do mais profundo pesar.

Ó, líquido e livre e terno!

Ó, selvagem e solto à minh’alma! Ó, maravilhoso cantor!

Só a você tenho ouvidos…. no entanto a estrela me mantém, (mas logo partirá;)

No entanto, o lilás, com dominante odor, me mantém.

14

Agora enquanto eu me sentava ao dia e observava

No final do dia, com sua luz e campos primaveris e o fazendeiro preparando as plantações

No grande cenário inconsciente da minha terra, com seus lagos e bosques,

Na beleza aérea celestial, (após os perturbados ventos e as tormentas;)

Sob os céus arqueados da tarde ligeira a passar, e as vozes de crianças e mulheres,

As multimoventes marés, – e eu vi os navios a navegá-las,

E o verão chegando com faustosidade, e os campos ocupados em labores,

E as infinitas casas separadas, como elas prosseguiam, cada uma com suas refeições e as minúcias dos usos diários;

E as ruas, como latejavam seus latejos, e as cidades retesas – ó! ali e então,

Caindo sobre eles todos e entre eles todos, me envolvendo com o resto,

Surgiu a nuvem, surgiu a trilha longa e negra;

E eu conheci a Morte, seu pensamento, e o saber sagrado da morte.

15

Pois com o saber da morte andando ao meu lado,

E o pensamento na morte por perto – andando ao meu outro lado,

E eu no meio, como companheiros, e como se dando as mãos a companheiros,

Eu parti rumo à noite acolhedora e velante, que nada fala,

Até às margens d’água, o caminho pelo pântano no escuro,

Aos cedros à sombra e solenes, e tão calmos os pinheiros fantasmais.

E o cantor tão tímido ao restante me acolheu;

O pássaro cinzento e pardo que conheço, acolheu a nós três camaradas;

E entoou o que parecia ser a canção da morte, e versos àquele que amo.

Dos recessos profundos, reclusos,

Dos cedros fragrantes, e tão calmos pinheiros fantasmais,

Veio a canção do pássaro.

E o encanto da canção me arrebatou,

No que eu segurava, como se pelas mãos, meus camaradas na noite;

E a voz de meu espírito fez-se gêmea do canto do pássaro.

CANÇÃO DA MORTE

16

Vem, suave e amável Morte,

Ondule em torno do mundo, serena chegando, chegando,

No dia, na noite, a todos, a cada um,

Mais cedo ou mais tarde, delicada Morte.

Louvado seja o insondável universo,

Pela vida e graça, e por objetos e o curioso saber;

E pelo amor, doce amor – Mas louvor! louvor! louvor!

E pelos braços de certo enrosco da frio-envolvente Morte.

Obscura Mãe, sempre a pairar por perto, com leve pé,

Ninguém jamais cantou por ti um canto de pleníssimas boas-vindas?

Pois eu o canto por ti – glorifico-te acima de tudo;

Trago a ti uma canção para que quando tiveres enfim de chegar, chega sem falta.

Aproxima-te, forte Libertadora!

Quando for assim – quando me tomares, eu canto alegre os mortos,

Perdidos no teu amado, flutuante oceano,

Banhados na enxurrada de teu êxtase, Ó, Morte.

De mim a ti alegres serenatas,

Danças a ti eu proponho, saudando a ti – ornamentos e festins a ti;

E as visões da paisagem aberta, e o céu aberto, são dignas,

E a vida e os campos, e a noite imensa e pensativa.

A noite, em silêncio, sob muitas estrelas;

A costa oceânica, e a onda de roucos sussurros, cuja voz eu conheço;

E a alma tornando a ti, Ó vasta e velada Morte,

E o corpo gratamente se aninhando em ti.

Sobre as copas eu alço a ti uma canção!

Sobre as ondas que se elevam e afundam – sobre a miríade de campos, e as vastas pradarias;

Sobre todas as densas cidades, e os cais e vias abundantes,

Alço esta canção com graça, a ti com graça, Ó, Morte!

17

Ao gêmeo de minh’alma,

Alto e forte prosseguiu o pássaro cinzento e pardo,

Com notas puras, deliberadas, espalhando, preenchendo a noite.

Alto por sombrios pinheiro e cedro,

Claro no úmido frescor, no perfume pantanoso;

E eu com meus camaradas ali na noite.

Enquanto a minha visão presa aos olhos se descerrava,

Como se para longos panoramas de visões.

18

De soslaio eu vi os exércitos;

E vi, como em sonhos sem ruídos, centenas de bandeiras de batalha;

Alçadas na fumaça das batalhas e perfuradas por projéteis, eu as vi,

E carreguei aqui e lá pela fumaça, e desfeito e ensanguentado;

E por fim com alguns retalhos sobrando nos mastros, (e tudo em silêncio,)

E os mastros todos em lascas e partidos.

Eu vi os cadáveres da batalha, miríades deles,

E os esqueletos brancos dos jovens – eu os vi;

Eu vi os destroços e destroços de todo soldado morto da guerra;

Mas vi que não eram como se pensava;

Eles próprios estavam em paz – nada sofriam;

Os vivos ficavam e sofriam – a mãe sofria,

E a esposa e os filhos, e o camarada pensativo sofria,

E os exércitos que ficaram sofriam.

19

Passando as visões, passando a noite;

Passando, desatando o enlace das mãos dos meus camaradas,

Passando a canção do pássaro eremita, e a canção gêmea de minh’alma,

(Canção vitoriosa, canção vazante da morte, mas canção vária e sempre alterada,

Embora baixa e uivante, as notas claras, elevando-se e caindo, inundando a noite,

Afundando tristes e sumindo, como se a avisar e a avisar, e ainda assim estourando de graça,

Cobrindo a terra, e preenchendo a extensão do céu,

Como aquele poderoso salmo na noite que ouvi dos recessos,)

Passando, eu te deixo, lilás das folhas em coração;

Eu te deixo lá no pátio, a florir, retornando na primavera,

Eu cesso minha canção por ti;

De meu olhar a ti no oeste, diante do oeste, em comunhão contigo,

Ó lustroso camarada, de argêntea face na noite.

20

No entanto, guardo toda, cada uma das coisas recobradas da noite;

A canção, o canto maravilhoso do pássaro cinzento e pardo,

E o canto gêmeo, o eco instigado em minh’alma,

Com a estrela a pender lustrosa, com as feições cheias de pesar,

Com o lilás alto, e suas flores de dominante odor;

Com os companheiros me acompanhando, mãos dadas, perto do chamado do pássaro,

Camaradas meus, e eu no meio, e sua memória para sempre eu guardo – para o morto que tão bem amei;

Para a mais doce e sábia alma de todos os meus dias e terras… e isso por ele, tão caro;

Lilás e estrela e pássaro, embrenhados no canto da minh’alma,

Lá nos fragrantes pinheiros, e os cedros de sombra e ocaso.

(tradução de Adriano Scandolara)

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