O Nascimento de Alberto Caeiro
Fernando Pessoa e o nascimento do Mestre Ingênuo
Alberto Caeiro foi, como admitiu muitas vezes Fernando Pessoa, um dos seus heterónimos que mais gostava e admirava. Foi criado quando um dia Fernando Pessoa se lembrou de fazer uma partida ao seu confidente, o escritor Mário de Sá-Carneiro, mandando-lhe um poema e dizendo que era de um suposto amigo seu. Quando finalmente pôs a descoberto a mentira disse-lhe por carta: “Quis inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — aproximei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia mais triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpa-me o absurdo da frase: ‘aparecera em mim o meu mestre’, mas foi essa a sensação imediata que tive.”
Em mais detalhes, Fernando Pessoa escreveu que o imaginou como tendo nascido em Lisboa, em 1889 e morrido em 1915, mas que viveu quase toda a sua vida no campo, com uma tia-avó idosa, porque tinha ficado órfão de pais cedo. Era louro, de olhos azuis. Como educação, apenas tinha tirado a instrução primária e não tinha profissão.
Fernando Pessoa diria ainda que, quando escrevia em nome de Caeiro, fazia-o “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever.” Como poeta, Alberto Caeiro apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos” que escreve sobre a natureza e só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. Ao mesmo tempo, despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão (“pensar é estar doente dos olhos”).
É pois um poeta de extrema simplicidade que considera que a sensação é a única realidade e que refletir sobre como as coisas são é entrar num mundo complexo, desnecessário e problemático onde tudo é incerto e obscuro.
Fernando Pessoa chamava-o de o “Mestre Ingénuo” e considerava-o como sendo o melhor dos seus heterônimos.
O Guardador de Rebanhos
I
Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer coisa natural — Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado.
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