Leituras: 376

EU DEGENEREI QUANDO PUXEI AOS MEUS
sou filho bastardo do Coronel Aureliano
loucuras maravilhas e tragédias pululam
entre os meus glóbulos vermelhos
antes de eu nascer um anjo torto tatuou
na minha omoplata: vai não!
eu vim
vi
e me fodi
lutei 7 infinitas guerras no flanco
esquerdo do velho soldado e só levei chumbo
perdi todas as pelejas
mas continuo cantando a canção
dos partisans no lado B da resistência
e botando fogo na bagaça
é maravilhoso ser um furúnculo na carne da engrenagem
no eclipse de 1919 minha cabeça perdeu
todos os parafusos e rebites
meus filhos amarraram o que sobrou
da minha carcaça numa bananeira
e eu aprendi a conversar com as lagartixas
agora só bebo água de chuva
os marimbondos fizeram morada nos meus tímpanos
e nas noites mais escuras eles arrotam
vagalumes e recitam o Livro de Enoque
decifrei todos os segredos da fotossíntese
mas ainda prefiro comer seriguela no bico dos sabiás
e na próxima temporada de monções
se tudo der certo
meu coração será uma alcachofra
AQUI, NA CARNE DO POEMA
na pele do poema uma cartolina branca grita
: aqui não tem metáforas de marzipã com açúcar de confeiteiro
não tem rimas reumáticas
frases de autoajuda
e nem aquela xaropada gut-gut do Carpinejar
aqui não tem gotas de otimismo
minutos de sabedoria
receitas de felicidade
ou pérolas da filosofonice de boteco
aqui, na carne do poema
só pus caos câncer bala perdida
e restos de desastres numa garrafa de pisco
aqui, na carne do poema
só filas felas falos mortos
pó de apocalipse
melancolia self service
miojo sabor cicuta
saudades da suástica
baladas para cortar os pulsos
e kamikazes sem capacete
aqui Serguei balança enforcado no quarto do Hotel Inglaterra
Florbela jaz entupida de água do Tejo com barbitúricos
Torquato fechou a porta e abriu o gás
e eu acordei nublado
aqui o cano frio do verso nas minhas têmporas
a roleta russa girando
o gatilho o cão o tambor
e a bala sem rédeas deslizando nas cordas da balalaica
procurando palavras revigorantes pra justificar o seu dia?
perdeu, playboy
aqui deus é menos que um furúnculo
coaching de cu é rola
e canibais usam guardanapo
O AMOR É UM BANDO DE BORBOLETAS VOANDO NO ESTÔMAGO
tem uma brisa boa no bafo do borboun
e uma réstia de lua nos telhados da Casa do Sol Nascente
Marie Laveau espeta agulhas
incandescentes na carne do meu coração de marzipan
uma mulher nua dança Ella Fitzgerald enquanto despejo uma dose generosa de vinho
num copo de requeijão
e um bando de borboletas voa no âmago do meu estômago
a mulher nua e linda rodopia no chão da cozinha
ela sabe soletrar meu nome
e a saliva vermelha escorrendo no canto esquerdo da boca
deixa sua risada mais brilhante e comestível
também sei o nome da mulher nua que dança Ella
Fitzgerald no chão da cozinha
tanto tempo dormindo de conchinha que
decorei todas as suas cicatrizes abismos
falésias verrugas e estrias
não importa se tem um eclipse nos muros do Kremlin
se moscas chafurdam nos restos de um risoto
se Gaza vai parir um apocalipse azul
se o tesão não cabe num cabernet
ou se New Orleans é só uma viagem do meu cabeção
quero mesmo é dançar Ella Fitzgerald
com a mulher nua no chão da cozinha
e rosnar baixinho na orelha da saudosa Rosie dos sapatos vermelhos
"ainda tem um bando de borboletas voando
no meu estômago!"
EU PREFIRO ENTENDER UMA CAUSA A SER O REI DA PÉRSIA
(para Carl Sagan e Osvaldo Luiz Ribeiro)
no princípio era a metáfora
as estrelas eram fogueiras acesas na escuridão do espaço profundo
e a Via Láctea a espinha dorsal da noite
no princípio a metáfora
depois o Verbo vil
e a lona rasgada do grande circo místico
foi quando os homens minúsculos
inventaram um monstro
chamado Deus
e o cu gigante da criatura pariu 7
tonterias
então vieram os templos
e os intermediários
então vieram os sacrifícios
o nó dos enforcados
a pedra do altar
e a fábrica de mitos
então vieram as lágrimas do sol
a estrela de 6 pontas
a cruz
a lua crescente
o medo o diabo
a culpa
o Tártaro
o dízimo
a prosperidade mórbida
a dama de ferro
o berço de Judas
o pecado
o bacon vegano
e o fim do mundo
abandonamos Anaxágoras no exílio dos ímpios
trocamos a matemática orgânica
por bizarrices sobrenaturais
ainda não chegamos perto de Alfha Centauri
não traduzimos o idioma do monólito
e sequer podemos tomar um martine em Marte
mas se tudo der certo
e se o grande cu do monstro Deus quiser amanhã
marcharemos com Jesus
viajaremos pra Meca
assaremos um cordeiro na grande
churrascaria de Jerusalém
e andaremos de joelhos até Aparecida do
Norte
tenho saudades das
metáforas
CAOS & CLOWS
Para Helmut Doork
tempo de estio
de substantivos secos gentileza seca
e expurgos a granel
tempo de certezas bélicas míssil no cio
muros
revoltinhas com grife
longos punhais
e linchamentos online
(aqueles ali
queimando livros em praça
pública
são os coxos de bege
aquilo lá
entre nuvens de Zyklon B
são anjos epiléticos
e antes que os adoradores da Santa Selfie
compartilhem os últimos 15 minutos
que antecedem o fim do mundo
Winston Smith negará
3 vezes
o amor de Júlia)
tempo de estio
e eu com um sol(riso)
mambembe
amadurecendo na carne da
minha cárie
vou costurar um abadá na
pele do peito
e cair de boca no balaio do Sampaio
talvez digam que eu dormi de touca
que eu não sou de nada
e que Durango Kid quase
me pegou
mas agora é tarde
já liguei o foda-se no
automático
botei meu bloco na rua
tem uma ogiva na minha gengiva
e acho que vou parir uma gargalhada podre
e azul
MANOELANDO
portas abertas
e
janelas escancaradas
o vento fez ninho na prateleira dos temperos
plantei açúcar na trilha das formigas
e todos os caminhos
levam
a romã
não sou de conversar com plantas
mas acho que o meu pezinho de manjericão
sabe traduzir silêncios
por aqui o capim desconhece o poder dos latifúndios
sexta passada comeu o muro do vizinho
e até o fim da temporada de tempestades
terá devorado o arame das cercas
quando setembro chegar
vou criar
o verso solto
***
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Autor
-
Vlado Lima é compositor, poeta, editor e agitador cultural. Publicou os livro Sabe de Nada, Inocente! (Editora Sopa de Letrinhas, 2019), Como Suportar Jabs no Baço e Encarar Nocautes (Patuá, 2015) e Pop Para-Choque (Patuá, 2012). Produz o Sarau Sopa de Letrinhas, é um dos fundadores do Clube Caiubi de Compositores e Sarau da Maria e também um dos responsáveis pela Editora Sopa de Letrinhas. Vlado possui poderes intermináveis. Não terminou o catecismo, não terminou a faculdade de jornalismo, nem o curso de datilografia. Especializado em fazer inimigos, contar piadas de caipira e falar da vida alheia. Nunca foi à Bahia. Odeia João Gilberto e tem saudades da Seleção de 82. Tocou em botecos de terceira do velho oeste e até num extinto inferninho da Avenida Pacaembu, foi demitido deste último, segundo as meninas da casa, porque “tocava” demais.Sobre o seu livro "NOIA""Venho dizendo: aqueles que não deliram não terão memória. Voltarão ao pó. Noia é uma manifestação contra a hipocrisia, contra o campo obscuro, contra tudo aquilo que impede a humanidade de gritar, de anunciar a própria existência. Contra a estupidez. Contra a iniquidade. É uma imensa tela de Dalí. Um mural onde a poesia se pronuncia, se estabelece." (Celso de Alencar)
Respostas de 2
Vlado, seu livro Noia é um atropelamento lindo.
De uma beleza indigesta. Leio à noite pra chorar só de manhã e com medo de apanhar.
De uma doçura sufocada que só seduz gente louca por não ser óbvia, por ter que ser escavada, arduamente resgatada dos escombros dos seus desmoronamentos.
Se em Cem Anos de Solidão houvesse um poeta, seria você.
Gabo deve te amar…
Como sempre disse para o poeta Vlado Lima, do qual honro em conhecer mais próximo que os leitores por aí, sua poesia me vem sempre como uma lixa, lixa mesmo, que raspa sobras do que ficou de compreensão desse real que insistimos em buscar, mas que a poesia dele: como um solavanco, tapa, beliscão, nunca nos deixa incólome. Evoé gran man das palavras.