
O TOQUE DA PONTA
O toque do dedo
Na pele solitária
Faz irromper
O sentimento genuíno
A ponta do dedo
Guarda o destino
Na impressão
Do amante
A ponta do dedo
Aponta o trajeto
Do fascínio
E do medo
O toque do dedo
Aquece o coração
Desatento
Dos envelhecidos
§§
A PEDRA
Na sala, nuvens gaguejam claridade
perante pálpebras engessadas.
Saudades calcificadas germinam nos órgãos vitais
e não provocam mais do que o poema de Ana C.
The rolling stones are not under my thumb.
Solenemente, levanto a planigrafia contra a luz.
Dias e dias pouco azuis
junto à marmota de Bill Murray
a soletrar a palavra spleen.
Será que Sísifo tinha pedra no rim?
§§
ALLIUM CEPA
Chore.
Chore até soluçar. Permita
que a mobília desmorone. Leia
um poema de Paulo Henriques Britto. Ouça
Dolores Duran no Spotify. Corte
uma ou duas cebolas na cozinha.
Elas exsudam abandonos antioxidantes.
Prenda, então, a lágrima com chave
espartana, como fez dias atrás, e
caminhe pelo centro da cidade.
Os miseráveis conseguem cortar cebolas sem chorar.
§§
SEM TETO, SEM CHÃO
À espera do voo,
olhos aguardam no painel de controle
a possibilidade exígua
de comunicação dos signos.
A dor vê-se sob a lupa
da interrogação.
O amor, em sua ilusão,
roga a Cronos
a passagem das horas
em um átimo.
A aeronave e o sonho
resistem a deixar o pátio.
§§
NADA EM TI ME SURPREENDE
Nada em ti me surpreende
Conheço teu contorno
Teu sotaque
Teu afeto
Sei do calor
De tuas mãos
Conchas onde guardo
Meu segredo
Deitada à sombra
De teu corpo
Sou nascituro cego
Incompleto
Nada em ti é cedo
§§
ROTINA
Abolir a inércia
entre roupas
na máquina de lavar
Apreciar a queda
dos seios sem paroxismos
Cutucar a própria onça
estampada nos pratos sujos
Subir a pele do rosto
com os dedos e indagar:
Espelho, espelho meu...
§§
TERROR
motosserra
a danificar ouvidos
suscitar a cólera
motosserra ilícita
a desumanizar homens
motosserra fabricada em covis
a esquartejar ex-pec-ta-ti-vas
motosserra cega
a descerrar os olhos do gato
aviltar pássaros pasmos
a motosserra cética
vocifera o fim do Cosmos
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