Acesso ou cadastro Autor(a)

Resenha do livro de Edson Cruz “Satori na laje”, por Indran Amirthanayagam

Epifania na laje

Foto Edson Cruz

Edson Cruz reinventa o haicai ao colocá-lo no asfalto e na quebrada

Entre tambores nagôs, haicais urbanos e epifanias jazzísticas, o poeta transforma a laje em miradouro cósmico e político.

Há livros que se apresentam como território, outros como travessia. Satori na laje, de Edson Cruz (EditoRia, 2025), é os dois: chão e horizonte, cimento e constelação. O poeta ergue sua voz sobre a laje — espaço periférico, cotidiano, concreto — e de lá alcança as estrelas, como quem transforma o quintal em observatório e o ruído da cidade em música cósmica.

A obra está organizada em blocos que se irradiam em direções distintas: o canto negro-diaspórico de Budanagô, a meditação metapoética de Lajeando estrelas, o chamado indígena em Seres que dançam, os retratos afetivos de Polaroides, até o desabrochar breve dos haicais urbanos em Sabor de saquê.

O livro é um caleidoscópio: cada giro nos devolve imagens diferentes, mas sempre pulsando no mesmo núcleo de resistência e beleza. O neologismo orikais, entregue no subtítulo, é uma síntese da mistura antropofágica proposta pelo poeta.

Cruz se arrisca na mistura. Aproxima o silêncio oriental do haicai da vibração do tambor nagô, faz conviver a palavra minimalista e a incendiária, o instante lírico e a denúncia social. Em seus poemas, uma criança reflete no espelho com sangue na barba, um ipê amarelo irrompe como falha na Matrix, os malês ainda combatem nas ladeiras de Salvador. Tudo é fulguração e cicatriz.

Mas o poeta não busca apenas a crônica ou o documento: há uma música subterrânea, um improviso de jazz e samba que atravessa o livro. Miles Davis, Coltrane, Cartola, Clementina, Luis Vagner, Mussum, Clara Nunes, Tom Zé não são apenas homenagens: são companheiros de compasso, vozes que sustentam o ritmo de uma poesia que prefere a síncope ao compasso regular.

O título concentra a chave: satori, iluminação súbita no zen-budismo, mas aqui alcançada não no templo, nem na montanha, mas sobre a laje. Esse deslocamento é político. O instante iluminado não se dá longe do mundo, mas no meio dele: entre becos, metrôs atrasados, velórios de bairro, injustiças gritantes. A poesia de Cruz, ao iluminar, não apazigua: incendeia.

Se o risco do livro é a dispersão — tantas vozes, tantas formas, tantos registros —, ele é também a sua força. A poesia de Edson Cruz não quer ser monocórdica: prefere a polifonia, o atravessamento, o excesso que nos devolve a complexidade do Brasil e da vida.

Satori na laje é, afinal, a epifania possível de nosso tempo: uma iluminação mestiça, periférica, negra, indígena, popular e erudita, feita de ruínas e de centelhas. Não um repouso, mas um sobressalto. Não uma contemplação solitária, mas um chamado coletivo.

Indran Amirthanayagam

Este é apenas um vislumbre da potência de Satori na laje.

Leia três poemas do livro e descubra novas epifanias. Clique aqui para ler.

Clique aqui para adquirir o livro e apoie a poesia contemporânea.

Compartilhe com quem ama poesia e deixe seu comentário abaixo!

Sobre o autor da resenha

Indran Amirthanayagam (indranmx.substack.com) é poeta, músico, diplomata, editor e tradutor norte-americano de origem cingalesa. Editou seus livros de poemas pela Beltway Editions. Edita a Beltway Poetry Quarterly e mantém o canal The Poetry Channel no YouTube. É dirigente da DC-ALT, associação de tradutores literários.

Bacharel em Literatura Inglesa pela Haverford College e mestre em jornalismo pela Universidade de Columbia. Escreve em inglês, espanhol, francês, português e crioulo haitiano.

Publicou 28 coletâneas de poesia e traduções, incluindo El bosque de deleites fratricidas (R.I.L. Editores, 2025), Isleño (2021), The Runner’s Almanac (2024), Seer (2024), Ten Thousand Steps Against the Tyrant (2022), Blue Window/Ventana Azul (2021), The Migrant States (2020), Sur l’île nostalgique (2020) e Lírica a tiempo (2020).

Outros livros incluem Il n’est de solitude que l’île lointaine (2017), The Elephants of Reckoning (1993, Prêmio Paterson 1994), Uncivil War (2013), Ventana azul (2016), Coconuts on Mars (2019), En busca de posada (2019), Paolo 9 (2019) e, em português, Música Subterrânea (Kotter Editoria, 2024).

Email: indranmx@gmail.com

Foto do autor

Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, editor e mestrando em Escrita Criativa na Universidade de São Paulo. Fundou e editou a histórica revista digital de literatura CRONÓPIOS e a revista digital MNEMOZINE. Edita, no momento, a revista MUSA RARA (www.musarara.com.br). Estudou música, psicologia e letras. Têm 12 livros publicados, entre poesia, prosa, ensaios e infantojuvenil. E-mail: sonartes@gmail.com Insta: @poeticas.da.escrita

Compartilhe esse post!

5 1 voto
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Outros posts

Cadastre-se como autor(a) no Ver-O-Poema.

Após se cadastrar você poderá enviar suas próprias postagens e nós cuidaremos das configurações.

assine nossa newsletter

postagens recentes

comentários recentes

divulgação

Cabeza de serpiente emplumada, novo livro de poesia de Claidio Daniel (Cajazeiras: Arribaçã, 2025)

vendas

Em Pssica, que na gíria regional quer dizer ‘azar’, ‘maldição’, a narrativa se desdobra em torno do tráfico de mulheres. Uma adolescente é raptada no centro de Belém do Pará e vendida como escrava branca para casas de show e prostituição em Caiena.
Um casal apaixonado. Uma intrusa. Três mentes doentias. Agora em uma edição especial de colecionador com capítulo extra inédito, conheça o thriller de estreia de Colleen Hoover, que se tornou um fenômeno editorial e best-seller mundial.
Editora Rocco relançou toda a sua obra com novo projeto gráfico, posfácios e capas que trazem recortes de pinturas da própria autora
Considerado o livro do ano, que virou febre no TikTok e sozinho já acumulou mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil.
A Biblioteca da Meia-Noite é um romance incrível que fala dos infinitos rumos que a vida pode tomar e da busca incessante pelo rumo certo.
Imagine parar por alguns instantes e desfrutar de um momento diário com alguém que te ama e tem a resposta para todas as tuas aflições.
1
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x