Paixão pela leitura!

Ricas brevidades de Clarice Lispector

O quarto secreto, teu quarto

       Flores envenenadas na jarra. Roxas, azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas. Este então é o teu segredo. Teu segredo é tão parecido comigo que nada me revela além do que sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.

Escrever, prolongar o tempo

       Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções porque em tais períodos faço tudo para que as horas passem; e escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível.

Verão na sala

       Com o leque ela pensa alguma coisa. Ela pensa o leque e com o leque se abana. E com o leque fecha de súbito o pensamento num estalido, vazia, sorridente, rígida, ausente. O leque distraído e aberto no peito. “A vida é mesmo engraçada”, concorda ela como visita que é recebida na sala de visitas. Mas num alvoroço controlado, eis que se abana de súbito com mil asas de pardal.

Primavera não sentimental

       Sei que comi a pera e desperdicei fora a metade – nunca tenho piedade na primavera. Bebemos depois água na fonte, e não enxuguei a boca. Andávamos calados, insolentes. Quanto à piscina, sei que fiquei horas na piscina. Olha a piscina – era assim que eu via a piscina, demonstrando-a com olhos tranquilos. Tranquila, sem nenhuma piedade.

Como se chama

       Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente – como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota – como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome.

                                       (Do livro Para não esquecer)

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