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“Risque esta palavra” – Poemas de Ana Martins Marques

Poemas do livro “Risque esta palavra”

por

Ana Martins Marques, poeta brasileira

A poesia de Ana Martins Marques atesta que as palavras são capazes de tudo: de absorver o que está ao redor — na tentativa de compreender o mundo —, mas, sobretudo, de criar novos mundos. Em seus versos, que nascem da observação e da curiosidade, a linguagem às vezes serve para pensar. Outras vezes, as palavras são deixadas de lado e dão lugar a um “buraco / cheio de silêncio”. E então a poeta conclui: “um poema não é mais / do que uma pedra que grita”.

Em Risque esta palavra, uma das vozes mais celebradas da literatura hoje cria uma espécie de inventário de experiências afetivas. Com clareza, inquietação e extrema habilidade, Ana Martins Marques mapeia os encontros e desencontros, a paixão e o luto, e prova que “quase só de palavras / se faz o amor”.

Foto: Ana Martins Marques

História

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo uma imagem
que viveu
alguns segundos.

Belo Horizonte, 7 de novembro de 2016.

Parte alguma

Não te enganes: viajar é aborrecido.
Num ponto, ao menos, todos os lugares
se parecem: neles já se passou
algo terrível.
As viagens cansam
e são tristes.
Viajando apenas constatamos
a repetição tediosa do que existe.
Pois para onde quer que compremos passagem
levamos a nós mesmos na bagagem.
Viajar é conduzir o corpo
— esse comboio imundo —
a um estéril atrito com o mundo
e depois passar o dia inteiro
usando a língua como quem usa dinheiro.
Nem a página em branco dos desertos
nem as savanas e sua promessa de aventura
substituem uma hora de leitura.
Mesmo as longas praias e as montanhas
mesmo os sítios inflacionados de história
mesmo as pirâmides os oráculos a arte
e o lugar preciso para se ver
do melhor ângulo
o sol se pôr como se põe em toda parte
serão depois riscados da memória.
Mais vale afinal ficar em casa
se é que se tem uma
e enviar-te este postal
de parte alguma.

Lembrete

Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas

uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada

um pequeno lama
cabeceia de sono

e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco

um bando de antílopes
atravessa um pedaço de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais

em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem

um a um
partem os barcos
de passeio

chove intensamente
sobre teleféricos

uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas

arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens

envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas

com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se
na areia

alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita

pensar que devemos estar
à altura
disso

Estamos todos reunidos

Estamos todos reunidos
na praia da palavra infância

um barco é um nó no mar

dormem tarde nesta época
as luzes do dia

estamos todos reunidos em torno
do seu lento apagamento

o mar devolve espumando
o que comeu

sob sua superfície brilhante
pastam peixes coloridos

anêmonas, pedras, corais
como sob a capa de um livro

estamos todos reunidos em torno
do ouriço da palavra ouriço

este ano você não veio
justo no primeiro ano da sua morte
você não deveria faltar

estamos todos reunidos em torno
da fogueira do seu nome

É uma alegria haver línguas

É uma alegria haver línguas
que não entendo

delas foram varridas
as lembranças todas

nelas o sentido passa entre as palavras
como a luz entre as plantas

nelas é sempre a infância:
mar mãe manhã

nelas as núpcias de tudo
com tudo
se celebram

nelas não há
como na nossa
mortos por baixo

(ou antes há muitos
só não
os nossos)

nelas as palavras de amor
ainda crepitam
como madeira nova

ando nas ruas entre as pessoas
que cantam (parece-me que cantam)
nessa língua que não entendo

parece-me que expressam claramente
a vida e a morte próprias
e dos outros

ou que apenas gorjeiam
sibilam, silvam

ando nas ruas e é como
um piano preparado
cheio de agitação
e de barulhos novos

ando nas ruas e é como se lesse
às pressas
cartas em chamas

ando nas ruas pensando como é possível
tantas pessoas falando nada
em voz alta

quando me dirigem por equívoco a palavra
sorrio como se pedisse
desculpas

depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa
e devolver-lhe a palavra que ela deixou
cair por descuido

O que fazer agora

O que fazer agora
com as mãos
cegas?

o cigarro é parente
do lápis

eram, afinal, gestos para nada
como na dança

(e fico à espera de alguém que coreografe o ato
de acender um cigarro numa praia cheia de vento)

as cariátides
as gárgulas
seriam mais felizes
se fumassem

só amamos de fato
o que serve para nada

mas as mãos mais do que nós
sabem o que fazem —
são desde cedo adestradas
no adeus

só sinto falta de fabricar
minha própria nuvem

e de esperar-te em alguma esquina
fumando em pé
como um farol

Um café com a Medusa

Tudo o que com os olhos toco
ela diz
transformo em pedra

mas tudo é já
desde sempre pedra
pó futuro

seus pais eram filhos do mar e da terra
cetáceos de um mundo arcaico
informe ainda
mas ela é mortal
destinada, como nós, ao pó

Ovídio diz ter sido justo e merecido
o castigo que lhe impingiu Atenas
transformando seus cabelos em serpentes
porque ela se deitara com Poseidon

são desde sempre as mulheres, ela diz,
condenadas pelo que fazem no leito

desde sempre amputadas
de suas terríveis cabeças

mas hoje estamos velhas
ela e eu
cansadas de refletir o tempo
como um escudo

só queremos tomar nosso café

cada serpente que lhe adorna a cabeça
fala em outra língua
e a traduz

mas na realidade
falamos pouco
enquanto olhamos o porto
e ela ajeita as asas
na cadeira

cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncio

ela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagostas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato é

e rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo

é talvez o que há no desejo de mais cruel
quando nele há tanto de cruel:
que ele dure, continue
e às vezes seja só desejo
do desejo
e seja móvel e mesmo
como o mar

aos que não têm mais pátria
seja porque se exilaram
seja porque o país se exilou de nós
e toma a forma dos nossos pesadelos
seja porque na realidade não há países
mas extensões variáveis de terra
que as nuvens sem passaporte
atravessam
resta só a memória do mar
ela diz
batendo inutilmente

o mar e o café
ela diz
e, a cada qual,
suas serpentes

À mesa

À mesa
onde também se come
senta e escreve

Gostas da mesa
por sua memória de árvore
porque antes de ser mesa
viveu a vida da floresta

Porque poderia ter sido casa
ou piano
ou caixão
e guarda também
a memória daquilo de que não foi matéria

Ou poderia ainda ter sido fogueira
em lugar de apenas arder em silêncio
sob o papel
que também foi madeira
também tem o dom de queimar

Escreve poemas:
devolve
o papel à árvore

Ou ao menos tenta:
senta

Ana Martins Marques

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Edição Companhia das Letras — uma das vozes mais originais da poesia brasileira contemporânea.

Foto do autor

Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte (MG). Com graduação em Letras, escreveu uma dissertação de mestrado sobre João Gilberto Noll e concluiu seu doutorado em literatura comparada na UFMG. Publicou os seguintes livros: A vida submarina (2009), Da arte das armadilhas (2011, Prêmio Biblioteca Nacional em 2012), O livro das semelhanças (2015, Prêmio Oceanos em 2016), Duas janelas, com Marcos Ciscar (2016), Como se fosse a casa (uma correspondência), com Eduardo Jorge (2017), O livro dos jardins (2019) e Risque esta palavra (2021). Maria Esther Maciel, professora da UFMG e crítica literária, em depoimento a Carlos Macedo, considera a autora “uma poeta admirável, com uma dicção inconfundível, que alia elegância, frescor, simplicidade e cuidado com a linguagem para capturar o que se esconde (e se revela) nas dobras da vida cotidiana. Além disso, reinventa, por vias imprevistas, o legado de poetas de diferentes gerações e nacionalidades. Cada poema que escreve é uma surpresa para quem o lê” (O Estado de Minas, 25.06.2021).

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