“Ter ou não ter” – levará um tempo pra gente aprender a homenagear Luis Fernando Veríssimo

Em “Ter ou não ter”, Luís Fernando Verissimo transforma o tempo em ironia: a vida é a travessia entre ainda não ter idade e não ter mais idade. Com humor delicado, ele lembra os sonhos de infância — fumar pela pose, beijar como no cinema, ganhar a chave de casa — e contrapõe ao desencanto de envelhecer, quando até a rebeldia já parece inadequada. No fim, resta a lucidez bem-humorada: se não dá mais para ser tudo, ainda sobra a graça de poder rir do que ficou pelo caminho.

Ter ou não ter – 03/07/2016

Vida, tome nota, é o nome que se dá à passagem de ainda não ter idade para não ter mais idade. Às vezes me pego pensando no que vou ser quando crescer e me dou conta de como minhas opções diminuíram. Não tenho mais idade para ser nada. Só me animo quando escolhem um novo Papa, e todos na lista de prováveis candidatos estão perto dos 80. Ser Papa é uma das poucas coisas a que ainda posso aspirar. Mas não sou nem cardeal. Aliás, nem religioso. Minha única credencial para o cargo é a idade. Devo ter deixado minha fé no bolso da fatiota azul, de calças curtas, com que fiz minha primeira comunhão. Invejo quem tem fé, mas minha religião particular é uma espécie de panteísmo urbano (devoção por pastéis de carne e boas livrarias e a crença de que há, sim, um deus: o oboé, que, além de ser um instrumento maravilhoso, é o que afina todos os outros).

E penso com saudade dos bons tempos em que, em vez de não ter mais idade, ainda não a tínhamos. E sonhávamos com tudo o que viria, quando tivéssemos. Entrar em filme proibido até 14 anos. Beber e fumar. (O importante não era a bebida e o cigarro, era a pose que os adultos faziam bebendo e fumando. Eu não via a hora de ficar adulto para poder bater com a ponta do cigarro na minha cigarreira prateada. Ficar adulto era adquirir a pose).

Ainda não ter idade significava não beijar como beijavam nos filmes proibidos até 14, já que nos proibidos até 18 ninguém sabia o que acontecia. Já ter idade significava poder ficar acordado até mais tarde, ganhar a chave da casa, eventualmente até deixar crescer um bigodinho. Ainda não ter idade era como ficar pinoteando no partidor, indócil, como um cavalo esperando a largada.

Não ter mais idade é ficar com esta impressão que até um ato de revolta por tudo o que não fizemos quando tínhamos idade e agora não dá mais, não seria apropriado para a nossa idade. Vida é essa lenta transformação de uma frase, de ainda não ter idade a não ter mais idade. Ou de poder ser, teoricamente, tudo que se sonhasse no futuro, ou só poder ser, teoricamente, Papa. E por pouco tempo.

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