Compartilho com os leitores e leitoras do Ver-o-Poema uma criação chamada Travessias: viagem imagética na Vila de Jenipapo. São 20 poemas nos quais me insiro no contexto de vivência na Vila de Jenipapo, em Santa Cruz do Arari, Arquipélago do Marajó. Esse é um território de conexão, e a escrita poética evidencia imageticamente a permanência e meus deslocamentos pelos encantos, diálogos, cheiros dos cardumes, das cheias e vazantes do Rio Arari, das fortes expressões culturais — inspirações também presentes na obra de Dalcídio Jurandir nos campos do Marajó.
Nos poemas sou moleque de beira de rio, caboclo pescador, observador e contador de histórias simples.
1. A morada
A casa de madeira, foi meu bisavô quem a construiu
Com os saberes passados pelo meu tataravô
A escolha da cupiubeira, foi porque um raio a derrubou bem no pé centenário
Nossa casa é sempre fresquinha mesmo no tempo do calor
Meu pai, seu Diquinho, também é carpinteiro e gosta dela toda pintadinha o ano todo
Ele diz que é para mostrarmos que nela mora a felicidade
Sou Manduca, vivo na Vila de Jenipapo e em breve construirei minha casa, pois estará chegando minha primeira herdeira.
2. Ensinamentos
Minha mãe disse que eu cresceria uma pessoa importante e estaria sempre a me proteger
Nunca esqueci disso, segui e cresci
Vejo o mundo com a minha essência e os ensinamentos dela
Na minha comunidade, a Vila de Jenipapo, em cima do rio Arari, todos me amam e sinto que também ouviram minha mãe
Ela partiu quando eu ainda era criança
Vejo-a todos os dias, sentada na ponte de madeira catando e penteando meus cabelos
Sempre que saio de casa recebo bom dia, boa tarde, boa noite dos meus vizinhos e abro sorrisos
Não os vejo, mas sinto-os e sei como são suas essências
O afeto diz muito para mim, assim disse minha mãe quando nasci
Olhares diversos no Marajó.
3. Travessias
Caminhar descalço na floresta úmida
Remar como uma brincadeira, uma visita, uma viagem a outra paragem
Respirar o ar frio que vem com o amanhecer e depois esperar o mormaço
Olhar o tempo que traz a noite clara de luar
Sonhar feito criança e acordar ninada
Correr, aprender, crescer e permanecer.
4. Retornos
Todas as vezes que volto, a emoção bate igual meu coração interagindo com o mundo
Gosto, de vir no período da cheia
Nele o rio Arari faz a troca com caboclas e caboclos
Tudo fica tão próximo e a vida segue
Há versos, musicalidade nas conversas que atualizam os sentidos
Acorda-se cedo para o recebimento da brisa fresquinha, que traz os cheiros dos apaiaris, curimatãs
Os barulhos das catraias só param na sesta sagrada
Sagrada Vila de Jenipapo.
5. Santos elos
Na volta de Santa Cruz encontrei um igarapé coberto por mururés
Imaginei o que estaria ali submerso
De repente, vi um curimatã saltando
A maresia chegou até o bote de madeira feito por um caboclo da beira
O cheiro de tudo estava vibrante
Era o movimento do amanhecer no Arari
Um encontro
Resolvi seguir remando
Sentir o frio no rosto
Conhecer outros elos, sem me perder nos encantos.
6. Jirau
O acapu deixa cair no solo úmido o que nos nutriu
Espaço para descamar o pescado, lavar o coador de café, dizer agora irei descansar
Dura como as vidas que ali duram
As marés que chegam à noite movimentam as memórias
Pela manhã as galinhas e os paturis bicam o que ficou germinado
A vida segue na casa, no ponto de atracação do saber caboclo.
7. Na ponte
Sento para conversar
Meus pés movem a água fria
O tempo passa feito o voo de um guará
Os sons que chegam dizem sobre a permanência
Partem de mim os pensamentos soltos
Encontrarão os outros nas travessias
Olharão a ponte
Continuarei lá.
8. O trapiche
Construído pelos Tibúrcios, mestres da carpintaria
Nunca ninguém caiu n’água, mesmo com as marés altas
Tiburcinho aprendeu projetar, mas quem cortou e pregou o acapu foi seu Pai
É dele que partem as promesseiras dos outubros em Belém
Que voltam com os pés calejados, mas renovadas e esperançadas
Saberes de uma Ilha.
9. Também nasci
Das histórias do Marajó
Dos banzeiros, ventos do norte
Do corpo e da alma de minha Avó Páscoa
Cabocla da Ilha Mexiana
Parede resistente no Delta imponente
O Amazonas em tudo.
10. No nosso quintal
Ser rio
Ser viagem
Ser vento morno
Ser imaginação
Ser verso
Ser entardecer.
12. Ela e sua filha
Banharam-se na água turva do Panaúba
Encontraram Iara e seguiram rio acima
Acompanhadas por um cardume de apaiaris
Havia calma naquele tempo
Leveza
Estavam purificadas
No território de suas histórias
Marajoaras.
14. Ao olhar a beirada
Subiria por essa escada
Como uma criança que engatinha e segue sem medo
Subiria por essa escada
Para brincar na floresta densa
Subiria por essa escada
Para encontrar minhas vidas
Subiria por essa escada
Para fazer parte da arte de sonhar na Amazônia.
15. O rio imponente
Recolocou os corpos no mundo
Abriu os poros
Trouxe os arrepios
Provocou suspiros
Deu fôlego a um verso.
16. Ventre
Um pensamento que vai no ventre
Com todo respeito
Com a consciência do bem viver
Sendo a base da terra
Uma floresta a brotar
Um verso acompanhando as ondas compassadas
Como não incluí-lo nas viagens do Marajó?
17. Brincadeira
Aqui eu cruzo o rio em um mergulho
Meu corpo diz sim
Move-se para o tempo do ar da vida
Meus pensamentos tocados
Equilibram-se
Assim, sem medo.
18. Arari
Canto de inspirações
Aos que não conhecem seus encantos
Não conseguirão entender a permanência, a resistência
O Arari em seu percurso corta terras, barros, árvores
Os encharcados das margens nutrem aningas, mururés
Nutrem a quem deles se nutrem
Nutrido, Dalcídio versou o Marajó
Como um menino de beira de rio, do meio do campo, banhista de igarapé
Nutriu Chove nos Campos de Cachoeira
Narrando em terceira pessoa
Um Ciclo do Extremo Norte
Criando
Nutrindo
Cachoeira
Santa Cruz
Resistindo no Arari.
19. Marajó
Corro em teus campos
Com a esperança de sentir o sol e a chuva ao amanhecer
Com a esperança de sentir a memória de Dalcidio na beira de um rio ao entardecer
Corro em teus campos.
20. Brincante Amazonas
Maré montaria por entre as folhagens
manhãzinha través
Espia, espia filho!
Ainda com a dor do parto
trouxe você aqui para um benzimento
Hoje quero que só espie
Depois o silêncio disse tudo
Disse da memória de Dona Belinha
Disse da viagem na mente de Tiago
Disse da levitação e troca com o imponente
Espia, espia mãe!
Vou nos benzer
O amanhã? Brincante Amazonas.
Pedro.Preto / Galvanda Galvão
Pedro Nazareno Barbosa Júnior
Em defesa do SUS e da Luta Antimanicomial