Lembro que um dia a poesia me cochichou: “Você também vai embora, menino?” – O poeta Remisson Aniceto

Retrato

Nasci em Nova Era
e a cidade já estava ali
muito antes de mim,
com suas ladeiras fatigadas,
com sua igrejinha matriz
e um rio de nome Piracicaba
que passava
sem nenhuma pressa.

Na infância, colecionei pedras,
vi bichos mortos na estrada de ferro
e silêncios nos quintais vizinhos.
Tive também um manso medo
dos sinos que tocavam
anunciando qualquer coisa
que eu não queria saber.

Nova Era era tão pequena
que cabia num retrato 3x4
como este da minha parede
aqui na metrópole.
Nela cabia o mundo
com seus tropeiros imaginários
e as mulheres de lenço na cabeça
acotoveladas nas velhas janelas,
bordando o destino alheio.

Lembro que um dia a poesia me cochichou:
“Você também vai embora, menino?”
Fui. Mas ficou uma parte minha
num banco de praça,
numa curva do rio
e em um nome gravado
com faca no tronco do ipê.

O tempo me ensinou que a poesia
não morava apenas em Itabira, no Rio,
em Parral, no Porto ou em Paris.
Descobri que ela estava sempre comigo,
nas paredes da casa de barro onde nasci,
na fuligem das lamparinas,
no lamento dos curiangos,
no murmúrio do riachos,
no orvalho dos montes
e nos raios de sol
das manhãs novaerenses.

Hoje, dizem que Nova Era mudou.
Duvido.
Assim como mudaram o seu nome,
a cidade pode ter mudado de roupa,
mas continua com o mesmo coração
batendo entre as montanhas
da minha memória,
feito um velho relógio parado
que ainda insiste em dar as horas.

&

Ausência

Nova Era ficou grudada em mim
como poeira na pele do menino
que corria descalço e feliz
sem pensar no amanhã.

Não escolhi a minha casa,
nem a ausência do pai.
Os meus dias nasciam
junto com a fome,
com o cheiro do fogão de lenha
e com o peito batendo
por um amor adolescente
que anos depois
descobri ser proibido.

Passei a infância numa casa
que fingia não ter segredos,
com silêncios nos cantos,
murmúrios atrás das portas
e um quintal que me olhava
como se adivinhasse
os meus pensamentos.

Na escola, aprendi a ler.
Os livros me ensinaram
que o mundo era grande
e os homens,
pequenos.

Um dia me fui,
levando pedaços da cidade
nas dobras da memória.
Alguma vez tentei esquecê-la,
em vão.
Ela sempre me vinha
no cheiro de terra molhada,
em um verso de canção
ou nalgum tropeço da fala.

Saí de Nova Era,
mas ela nunca saiu de mim,
seguiu-me escondida no peito,
esperando a hora de reaparecer
num sonho,
num poema,
numa crônica,
numa agonia qualquer
nas manhãs de domingo.

Saí de Nova Era,
mas ela nunca saiu de mim,
seguiu-me escondida no peito,
esperando a hora de reaparecer
num sonho,
num poema,
numa crônica,
numa agonia qualquer
nas manhãs de domingo.

&

Café de Minas

Hoje quero te preparar o café mais puro.
Não é aquele café de máquina, artificial.
É café de Minas Gerais, marrom-escuro,
De grão colhido na hora, todo natural.

Café que a cada gole renova tua vontade de beber,
Espesso, grosso, meio amargo, saboroso,
Café quente, que te dá calor e te dá prazer,
E de surpresa pode juntar-se ao leite mais gostoso.

Café torrado, brilhante, no exato ponto, maduro,
Que derrete na tua boca e te deixa mole.
Café das montanhas de Minas, de grano duro,
Que te faz suspirar de prazer a cada gole.

Se quiseres, é só pedir que iremos agora,
Ligeiros, expressos, saciar o desejo teu.
De manhã, de tarde, de noite, a qualquer hora,
Iremos sem demora, eu e o café, o café e eu.

&

Passado, Presente, Futuro

O passado é o sujeito mais estranho que nasceu.
Ele vive no meio da gente, sem saber que já morreu.

Não consigo viver sem pensar no passado, e ninguém consegue.
Ele aparece sempre que estou mais absorto.
Em qualquer lugar, a toda hora ele me persegue,
E ninguém consegue fugir de quem está morto.

Às vezes temos a impressão de que ele está longe,
Mas ele está a cada segundo do nosso lado.
Só uma invisível linha que entre nós se esconde
Separa o presente do que um segundo depois será passado.

Sem o passado, que tudo gerou, não haveria futuro e ninguém viveria.
Sem ele ninguém sonharia, como esta noite sonhei.
Ele é o cofre da vida, onde guarda nossas tristezas e nossas alegrias.
Pra nunca esquecer das pessoas que tanto amei,
Enquanto eu viver, quero lembrar do passado todos os dias.

&

As pessoas não morrem; elas apenas dormem e partem

Quando eu me for, não digam que eu morri.
Respeitem o meu silêncio quando eu partir.
Alguém por acaso já lhes disse que morreu?
Ninguém disse e jamais dirá. Nem eu.

A vida não é casa de um só corpo e de uma só voz.
Dar abrigo a todos é o que a faz tão rica.
Sua porta fica sempre aberta para todos nós.
Entra um corpo, outro corpo sai, e a casa fica.

Nenhum humano pode me tirar daqui.
Ninguém é capaz de saber da minha sorte.
Quem não morreu não pode saber que eu morri.
Não chamem o meu silêncio de morte.

Não matem as pessoas dentro do peito. Não as matem
quando elas se vão, deixando o silêncio em seu lugar.
Elas não morrem, elas apenas dormem, e partem,
para encontrar nova vida onde todos nós depois vamos morar.

***

Compartilhe nas redes sociais.

5 1 voto
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
9 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Celso de Alencar

Parabéns Ver-O-Poema pela estupenda contribuição para a fomentação e a difusão da poesia, da literatura. Obrigado, D. Remisson, por nos trazer sua poesia. Da alma, da terra. Da emoção. Grande abraço deste companheiro.

Remisson

Dom Celso, que alegria te ver por aqui. Realmente, o Ver-O-Poema é um trabalho maravilho que o Edmir realiza, divulgando tanto os escritores conhecidos quanto aqueles emergentes. Sinto-me privilegiado com a minha poesia aqui, e privilegiado pelo teu apoio. Nem preciso repetir que te admiro muito, né? Um abraço.

Elke Lubitz

O site é incrível e nós agradecemos. Encantei- me com os poemas de Remisson Aniceto, parabéns!

Remisson

Gratidão, Elke. Te desejo muita luz e inspiração.

Vlado Lima

👏👏👏

Remisson

Grato, Vlado, pela visita. Um abraço!

Octaviano Joba

Lindo de se ler! Parabéns!

Remisson

Olá, Octaviano, tudo bem? Obrigado pela tua leitura e pela tua presença aqui. Boa quarta-feira.

Remisson

Passo para agradecer ao Edmir Bezerra pela oportunidade dada à minha poesia. Ter meus textos compartilhados nesta página tão rica e diversificada me deixa muito feliz.

Receba novidades no seu e-mail assine nossa newsletter

posts recentes

livros recentes

Também podes Ler

9
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x