Leia o meu poema
Você vai ler o meu poema
com os olhos, com as mãos
e a orientação meta-ficcional de Italo Calvino.
O que eu fiz para abastecer os seus rios
foi uma sangria sem tempo
e uma armadilha sem fim.
Se lido de cima pra baixo
o poema diz pouco. De baixo pra cima
nada diz. Vale intercalar os versos
e ver o poema desabastecido.
Se a manhã me subverte
eu não atendo o seu bater na porta
eu não revelo o quanto fui medonho
nem vou dizer do tempo que vivi.
§
Poema da inesquecível mulher
Eu, vero, me bati na tua porta:
mal caibo em mim, sem ti
no que importa
Sou trava de uma casa redigida
no vão da tua mão subtraída
A sede que me seca e que me late
é o cão da tua mão que me abate
Tivesse o sumo, a boca, o teu retrato
teria o que não sou, quadro abstrato
Pela manhã mais brusca e ressurgida
vou me contar e te entregar a vida.
§
E como eu morresse a cada passo de Minas
E como nós 2 só cabemos no escuro
num rasgo da paixão desesperada
pedaços estridentes de um muro
que atravanca o ritmo da estrada
Pobres nós 2, estranhos e mortais
sabemos que a vida é força quente
estranhos dos infernos, e bem mais
que o nosso amor é fogo e é serpente.
§
2.
E como eu morresse em cada passo
de Minas, caminho da sangria
na cara de um Cristo em estilhaço
com um cravo na mão já toda fria
E como eu só perdesse a carapaça
nos pedaços do tempo que me cria
nestas ruas verdugas de trapaças
na cara de um Cristo em agonia.
3.
Uma cruz por aqui toda é fumaça
de uma sombra que chega e nunca passa.
§
A máquina do mundo (pós-Drummond), 2
E como eu não coubesse na montanha
de tanto entardecer aqui no alto
que sobra em reticências de navio
E como eu não soubesse de um braço
que no desvio da vida me coubesse
em tão mortais canções sem voz e pátria
E como tudo aqui só renascesse
nuns rios podres e sem águas rasas
eu pude me rever sem preconceitos.
Olhei meu antro, me calei de medo
como em quinhões de pedra eu me comesse
em cada gomo e me arrebentasse
Sobraram duras missões em minhas mãos
cobraram ouros que paguei sem medo
e me retive sempre em olhar pra nada.
…
Romério Rômulo (poeta prosador) nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e mora em Ouro Preto, onde é professor de Economia Política da UFOP e um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar – Rio de Janeiro RJ.