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Por que “Sentimento do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, é um livro tão buscado?

Sentimento do Mundo — leitura e apresentação

Sentimento do Mundo - Carlos Drummond de Andrade

O interesse contínuo por Sentimento do Mundo (1940), talvez se explique pelo livro ser um marco decisivo na trajetória de Carlos Drummond de Andrade. Nele, o poeta encontra, ainda com 38 anos de idade, sua voz madura, amplia a força do modernismo e oferece uma leitura profundamente humana de um mundo em crise.

1. Maturidade artística e herança modernista

Os livros que Drummond publicou nos anos 1930 já mostravam sua adesão ao modernismo: versos livres, linguagem do cotidiano, atenção à vida urbana. Mas em Sentimento do Mundo, essa linguagem se torna mais complexa, mais íntima e mais universal. O poeta domina plenamente os instrumentos modernistas e vai além deles, conferindo profundidade emocional às questões públicas e históricas. A presença de memórias rurais do poeta itabirano e a introspecção mineira, convivem com o olhar cada vez mais voltado para o mundo. Esse equilíbrio entre o íntimo e o coletivo, entre o Brasil e o mundo, entre o homem e a História faz do livro uma obra-chave do modernismo brasileiro.

2. O início da grande fase drummondiana

Muitos estudiosos consideram Sentimento do Mundo o primeiro grande momento de maturidade poética de Drummond. Nos anos 1950, ele aprofundaria essa via com A rosa do povo, mas aqui seu estilo já demonstra consistência formal, força reflexiva e pureza afetiva. O livro é procurado porque nele está o “início da virada”: o momento em que Drummond deixa de ser apenas um jovem poeta promissor e se torna uma das vozes centrais da poesia de língua portuguesa.

3. A temática social e política

Uma das razões mais fortes para a popularidade do livro é seu engajamento. Sem panfletagem, Drummond revela um posicionamento político mais explícito. Influenciado por leitura marxista e inquietações com os rumos do mundo. O poeta presencia em plena juventude a ascensão de ditaduras na Europa; a iminência da Segunda Guerra Mundial; e no Brasil, o endurecimento do governo Vargas, culminando no Estado Novo (1937). Drummond transforma sua poesia em testemunho de uma época. Nunca de modo óbvio: ele questiona a eficácia da poesia política, oscila entre resistência e fatalismo e expõe ao leitor sua própria insegurança. Essa honestidade é uma das marcas que mais fascinam seus leitores até hoje.

4. A tensão interna que se tornou símbolo

Mundo mundo vasto mundo, um dos versos mais conhecidos da poesia brasileira, já mostrava o conflito entre o eu e o mundo. Em Sentimento do Mundo, essa tensão atinge nova profundidade: “Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor.” Entre esses dois versos, escritos com dez anos de diferença, está o amadurecimento interior do poeta. É essa tensão entre o indivíduo e o mundo histórico que faz do livro uma obra atemporal. Os leitores se reconhecem nesse confronto entre subjetividade e realidade opressora.

5. Humanidade, dúvida e clareza

Drummond observa os conflitos políticos e sociais, sem abandonar a dimensão humana. Seus poemas dialogam com o trabalhador, com o habitante da cidade, o estrangeiro, o oprimido. Mas também, confessam dúvida, fragilidade, distância social e medo. Obras como “Mãos dadas”, “Os ombros suportam o mundo”, “O operário no mar”, “Os inocentes do Leblon”, entre outras, tornaram-se referências porque condensam angústias que ultrapassam o contexto de 1940.

6. Um livro tenso, belo e profundamente humano

A grande procura por Sentimento do Mundo deriva, em última instância, de sua humanidade. Drummond expõe o conflito interior de um poeta diante da injustiça, do medo e da necessidade de transformação. Faz isso sem abdicar da beleza poética. Sentimento do mundo é um livro vivo. As poucas páginas são permeadas por 28 poemas, com versos que retratam a tensão de um mundo prestes a explodir; a intimidade de um sujeito dividido; a crítica social refinada; a esperança cautelosa; e a linguagem que se tornou marca de Drummond.

Por que Sentimento do Mundo é tão procurado?

Sentimento do Mundo continua sendo um dos livros mais procurados de Carlos Drummond de Andrade porque reúne, em um só volume, aquilo que torna a poesia do autor inesquecível: maturidade emocional e artística; engajamento político sem panfleto; reflexão sobre o indivíduo diante da História; tensão entre intimismo e coletividade; estilo modernista fluente e ao mesmo tempo profundo; a capacidade de expressar dúvidas, fragilidades e esperanças que ainda são nossas. Além de muita simplicidade e beleza. “E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.”

SENTIMENTO DO MUNDO

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite.

MENINO CHORANDO NA NOITE

Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino [chora. O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas. E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo [na colher. Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo. E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta [a cabeça e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas). E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino [chorando.
Carlos Drummond de Andrade

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