– Adalcinda Camarão, fragmento do Discurso de posse, na Academia Paraense de Letras, em 25 de janeiro/1950.
Origem
Eu queria mesmo, ó grande mar azul
que conhecesses o meu cabelo solto ao vento,
tão parecido com o teu pensamento
livre, crescendo sempre...
Eu fazia questão que ouvisses o meu soluço aafado
como de tuas ondas,
que mal põem à tona a cabeça o vento esmaga.
Eu queria, afinal, que me visses despida
com a tua correnteza que passa
sem pudor ou malícia - transparente.
Tu reconhecerias
no contorno transluzente do meu corpo
a desordem ritmada da tua carícia que minha mãe bebeu
no dia em que se banhou nas tuas espumas,
quase ao me dar à luz,
e mergulhou, afinal, sondando-te a profundidade,
onde encontrou minhalma!
- Adalcinda Camarão. Antologia Poética. Belém: Cejup, 1995, p. 21.
Espaço-tempo
Quero-te mesmo, amor, na ausência ou na presença,
com rumores de sombra, alarde ou desafios.
―Dormir num chão de luar à sombra de roseiras
ou sob os pirisais na baixada dos rios...
Assim te amo e te sei amando dia-a-dia,
acordada ou dormindo o germinal segredo.
E te abraço sem ter teu corpo ao meu, beijando
a saudade sem ser de quem se tem sem medo.
Amo-te mesmo, amor, no madrigal do tempo,
derrubando androceus e gineceus se amando
nas pálpebras do estio que o sono não acorda.
No teu dorso eu descanso a caminhada enorme
que fiz pra te encontrar ― lábios ardendo em busca
da tua noite azul onde minh'alma dorme.
Amo-te mesmo, amor. Se me vens ou te vais.
Sinto-te à flor da pele e à superfície da água
que dessedenta o bem que nos lava o mal.
Amo-te e não sei quem és ― teu nome nem origem.
Só sei que és homem são e me sabes mulher.
Que beleza este amor sem pranto nem vertigem,
sem princípio nem fim, nem dimensão sequer!
- Adalcinda Camarão, em "Antologia Poética". Belém: CEJUP, 1995.
Amor
Teus olhos se espreguiçam no meu peito
e dormem o riso morno das abelhas
tontas de mel rolando
amor - amado...
Teus lábios escrevem poemas sós, secretos,
nos meus lábios lacrados desta sede
que só tu sabes a paixão imensa...
Tuas mãos debulham rimas
em todo o meu dorso dourado
da tua presença
à sombra da tarde que escoa...
Tentar ficar longe de ti é fiasco, é legenda.
Fica rente a ti blasfêmia que Deus abençoa.
- Adalcinda Camarão, do livro 'Vidência' - em "Antologia Poética". Belém: CEJUP, 1995, p. 340.
Anseio
Ah, eu quisera ser aquela árvore
coberta pelas garças brancas de vôo incerto!
Árvore plantada pelo acaso
à margem do rio enorme!
Árvore de frondes anantos,
desejosa, quase humana,
que se arrepia ao contato
das penas dos papagaios que passam!
Árvore que tem o grande amor do vento
e que da sombra para o gado descansar.
Árvore estéril, árvore bela, árvore fresca,
árvore amante de todos os crepúsculos,
no solstício do inverno ou do verão,
Árvore do pensamento das outras árvores!
- Adalcinda Camarão, do livro "Poesia do Grão-Pará" (seleção e notas de Olga Savary). Rio, Graphia, 2001.
Despedida
Pediste-me qualquer coisa.
Qualquer coisa de meu muito íntimo
que me cobrisse o corpo…
Que me tocasse a pele arrepiada,
E como pra te dar eu não tivesse nada,
E como só a escuridão me envolvesse
pelos olhos, pelos ombros,
pelo ventre morno e mofino,
eu te dei de presente a minha noite enorme,
a minha grande noite sem memória e sem destino!
- Adalcinda Camarão, do livro "Poesia do Grão-Pará" (seleção e notas de Olga Savary). Rio, Graphia, 2001.
Depressão
[Aos manos Céli e Edir]
Quero ar. Ar puro dos campos marajoaras.
Água enchente de rio - temperatura do meu corpo.
Pisar caminhos estreitos sem tráfego.
Beber chuva - comer caça
na faísca arisca da brasa
que o boi vigia.
Quero vento alísio - uma só estação todo ano!
Olhos. Inteligência.
Brasilidade. Gargalhada.
Silêncio de rádio, de relógio, de telefone.
(Não fale em televisão, por favor.
Quero plantar frutas e legumes,
criar aves que me sustentam e se misturem comigo.
Quero os meus cabelos que cobriam os joelhos.
(Quem cortou os meus cabelos, ninguém se lembra.)
Quero falar em poesia descuidada
num degrau de ponte velha,
onde os barcos cochilam
à maresia do luar.
Uma rede de esse rangindo sonolentamente
num canto sombrio da varanda invadida
dos galhos do biribazeiro...
Quero a noite. Candeeiro espetado ao alto da parede
com uma paisagem de Sílvio Pinto.
Quero fugir para o verão do meu Pará.
Quero o meu homem!
- Adalcinda Camarão, em "Antologia Poética". Belém: CEJUP, 1995, p. 154.
Pasmo
Depois que o momento passou,
fiquei quieta na tua alma,
qual gota de orvalho
dormindo na pétala de um lírio.
Fiquei parada nos teus olhos,
Qual vitória régia
na doçura da onda
de um lago azul!
- Adalcinda Camarão, em "Antologia Poética". Belém: CEJUP, 1995, p. 29.
Sortilégio
Há um pensamento chorando dentro da noite erma.
Há um pensamento virgem, solitário,
apalpando a floresta,
roçando no rio largo,
por onde bóia, em cada estirão,
o sortilégio da mãe-d’água.
O jurutai canta para a lua cheia,
Os grilos arremedam o assobio do vento,
As nuvens sacodem chuva e tristeza
só porque eu quero luar nos meus pés.
E vem lá de dentro da mata,
lá de onde eu não sei como está,
a voz rouca do silêncio amazônico
consolando as umbaubeiras perdidas
que a trovoada vergou.
Há um pensamento chorando dentro da noite esquecida…
Descendo pela correnteza,
pedindo a mão das estrelas…
Há um pensamento com sono e sem poder dormir…
Marinheiro, vê se tu podes compreender
esse pensamento de mulher.
- Adalcinda Camarão, do livro "Poesia do Grão-Pará" (seleção e notas de Olga Savary). Rio, Graphia, 2001.
Paisagem Marajoara
Da migração úmida e mansa do crepúsculo
ficou um olor de maresia brava,
lambendo o limo lodoso das raízes.
A lua, ciumenta e oca,
encolhida e acuada,
espia desconfiada,
pelas frestas da mata,
a terra grávida de sombras e silêncios…
O vento é um passarão agourento
voando por sobre os contornos ondulantes
da grande ilha supersticiosa
de litorais iluminados
pelos olhos da boiúna.
- Adalcinda Camarão, do livro "Poesia do Grão-Pará" (seleção e notas de Olga Savary). Rio, Graphia, 2001.
Bom dia, Belém
Há muito que aqui no meu peito
Murmuram saudades azuis do teu céu
Respingos de orvalho me acordam
Luando telhados que a chuva cantou
O que é que tens feito, que estás tão faceira
Mais jovem que os jovens irmãos que deixei
Mais sábia que toda a ciência da terra
Mais terra, mais dona do amor que te dei
Onde anda meu povo, meu rio, meu peixe
Meu sol, minha rede, meu tamba-tajá
A sesta, o sossego na tarde descalça
O sono suado do amor que se dá
E o orvalho invisível da flor se espalhando
Cantando cantigas e o vento soprando
Um novo dia vai enunciando, mandando e
Cantando cantigas de lá
Me abraça apertado que eu venho chegando
Sem sol e sem lua, sem rio e sem mar
Coberto de neve
Levado no pranto dos rios que correm
Cantigas no ar
Onde anda meu barco de vela azulada
Que foi depenada sumindo sem dó
Onde anda a saudade da infância na grama
Dos campos tranquilos do meu Marajó
Belém, minha terra, meu rio, meu chão
Meu sol de janeiro a janeiro, a suar
Me beija, me abraça que eu
Quero matar a imensa saudade
Que quer me acabar
Sem Círio da Virgem, sem cheiro cheiroso
Sem a chuva das duas que não pode faltar
Murmuro saudades de noite abanando
Teu leque de estrelas,
Belém do Pará!
- Adalcinda Camarão (musicado por Edyr Proença nos anos 1970)
Sinos de Belém
Sinos orando, sinos de Sé,
Sinos cantando em toada lassa,
Falai aqueles que não têm fé:
“Ave-Maria, cheia de graça Graça...”
Há tantos ímpios que blasfemando
todos os dias estão conosco.
Chamai-os sinos. Continuando,
dizei depois: “O Senhor é Convosco,
bendita Soís...”
E quando em noites que vestem luto
alguém fizer o sinal da cruz,
lembrai, também : “ Entre as mulheres,
bendito é o fruto
do Vosso ventre – Jesus.”
Pobres dos cegos sem ter o dia
a luz que brilha nos olhos meus.
A todos esses, sinos cantores,
ensinai sempre: “Santa Maria, mãe de Deus,
rogai por nós, pecadores...“
Sinos de Lourdes e da Trindade
que docemente minh’alma incessam,
sinos da capital de Belém,
pedi à Virgem, por nós, a bênção
“ agora e na hora da morte – Amém”!
- Adalcinda Camarão
O segredo de Soror Dolorosa
Era um claustro, além, que a monja silenciosa
Resava uma oração, num recanto isolado;
Era a segunda vez que Soror Dolorosa
Descobriu ante o ceo o rosto immaculado.
Era num claustro, alem, que a monja silenciosa
Resava uma oração, num recanto isolado;
Era a segunda vez que Soror Dolorosa
Descobriu ante o ceo o rosto immaculado.
Toda de lucto, assim, tranquila e piedosa,
trazia ao casto olhar de Jesus crucificado,
apertando nas mãos a medalha, nervosa,
de uma imagem de alguém, talvez do amor velado.
Um dia Ella morreu...E, então, toda tardinha,
Cantava, a soluçar, uma pobre avezinha,
Diffundido na cruz um rosário de dor.
E numa tarde fria, a sós, por uma estrada,
foi um encontrar sobre a campa isolada
O segredo immortal, a medalha do amor
- Adalcinda Camarão, em Revista Guajarina, nº 05. 01 março/1930, p. 12. (grafia original)
Que são teus olhos
Teus olhos... Queres saber?
Teus olhos... Digo ou não digo?
Teus olhos... Vou já dizer:
São o meu único abrigo.
Sinceramente já vistes
Uma lagoa azulada,
com sombra serena e triste
eternamente cercada?
Pois teus olhos afinal,
são embora não queiras,
U'a lagoa celestial
com sombra triste: as olheiras.
Nessa lagoa, que enleia,
dos teus olhos, meu amor,
toas as tardes passeia
o cisne da minha dor.
Agora sabes que são
esses teus olhos que um dia
roubaram meu coração,
mataram minha alegria...
- Adalcinda Camarão (Itaguary 9.33), em Revista A Semana, nº 767. 07 janeiro/1922, p. 09.
Poema
Se ele veio da luz, eu de que vim?
Se ele veio da luz que iluminou
o primeiro instante da fecunda,
onde está que não desce para consolar a terra que chora
E todos os elementos que juntam-se à minha dor?
Eu sei que sou água viva
que corre no fundo dos canais esquecidos...
Água que se mostra e se oculta, e se perde e se reencontra
Á procura de um socorro longínquo...
Eu sei que venho do fundo dos séculos.
chorando, alucinada, para a aurora que foge...
Mas se êle veio da luz que brota e sobe,
Simbolizando as vegetações, e o amor, e o seio da noite sem estrelas,
simboreando as vegetações, e o mar, e o seio da noite sem estrelas,
por que me expulsa do dia, eu que não sei de onde vim,
e não me deixa viver um pouco de vida sem inversos,
até que o sol beba o meu corpo de água pura
e a aves do céu, mansa e boa, venha buscar a minh'alma?
- Adalcinda Camarão (Janeiro de 1942)
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Autor
-
Adalcinda Magno Camarão Luxardo (Muaná, Ilha de Marajó/Pará, 18 julho de 1914 – Belém/Pará, 17 de janeiro de 2005) poeta e compositora brasileira. Filha de João Evangelista de Carvalho e Camila de Brito Magno Camarão. Foi casada com o cineasta Líbero Luxardo, com quem teve um filho.
Estudou no Colégio D. Pedro II e também no Instituto de Educação. Despontou como poeta na revista de estudantes denominada “Terra Imatura”, no ano de 1938.
Adalcinda Camarão se inseriu no cenário cultural literário paraense como uma das poucas mulheres que militaram no universo da arte durante este período, quando ainda normalista, passando a fazer parte dos grupos de estudantes que lutavam em frentes literárias. Importante dizer que a autora contribuiu com revistas literárias que circulavam na sociedade belemense na primeira metade do século XX – Guajarina, A Semana e Amazônia –, que ajudaram a difundir sua habilidade poética, além de escrever para os jornais O diário e a Província, o que demonstra sua inserção e importância na cena literária daquele momento, nos auspícios da constituição de um movimento literário local.Em 1949, no dia 07 de agosto, ocorreu um fato marcante na trajetória da poeta. A despeito da pouca idade, Adalcinda foi eleita para ocupar a cadeira de número 17 da Academia Paraense de Letras. Posto cujo pioneiro ocupante fora Felipe Patroni. Um feito notável. Sobretudo, pelo fato de que – após a também paraense Guilly Furtado – Adalcinda era uma das primeiras mulheres a preencher vaga em academias literárias no Brasil. Ela chegou a anteceder Raquel de Queiroz, a primeira na Academia Brasileira. Sua posse ocorreu no dia 25 de janeiro de 1950, no Teatro da Paz. “Eu me recordo que estava muito nervosa. Achava que não ia conseguir fazer o discurso. Cheguei a pensar em não comparecer a cerimônia. Mas o Líbero, com toda sua calma, disse que eu não me preocupasse, que eu apenas fosse até lá e deixasse tudo transcorrer naturalmente”.
Em 1956, viajou para os Estados Unidos, com bolsa de estudos (Award) oferecida pelo Departamento de Estado em cooperação com o Departamento de Educação e recomendada pela embaixada Americana no Rio de Janeiro. Estudou na América University, graduando-se em linguística, revalidando o mestrado em Educação, feito ainda no Brasil, na Universidade Católica.
Durante o período que residiu nos Estados Unidos, trabalhou em conferências e entrevistas para a Voice of America em Washington, entre 1956 e 1958; trabalhou na Embaixada do Brasil, em Washington, D.C., de 1961 a 1988; Além de atuar como professora de português para estrangeiros e literatura brasileira e portuguesa, lecionando em universidades e centros de ensino americanos.
De 1957 a 60, ensinou Português para estrangeiros, na La Case Academy of Languages e Sanz School.
Em 1960, abriu o Departamento de Português da Georgetown University (Institute of Languages and Linguístics), onde ensinou literatura do Brasil e de Portugal, de 1960 a 1965.
Lecionou Português na American University em 1974 e 1975; na Graduate School of the Agriculture Department, de 1966 a 1977; na Casa Branca, para assistentes dos presidentes Nixon e Gerald Ford, em 1974 e 1975; na Arlington Adult Education, 1986, 1987 e 1988.
Durante o período que residiu no exterior, Adalcinda jamais deixou a sua poesia. Vivia produzindo seus textos e os enviava a Academia Paraense de Letras, revistas e jornais de Belém.
A escritora também recebeu, diplomas e medalhas, dentre elas estão: medalha Cultural José Veríssimo; medalha Olavo Bilac; medalha Paulino Brito; medalha Centenário do Teatro da Paz; medalha Bicentenário da Igreja São João Batista; medalha comemorativa da cidade de Monte Alegre.
Autora de vários livros de poesia como: “Baladas de Monte Alegre”, “Entre Espelho e Estrelas”, “Folhas”, “Vidências”; além de publicações sobre educação, folclore e teatro.Volta ao Brasil, no ano 2000, após 44 anos radicada nos Estados Unidos, fixando residência em Belém/PA, onde faleceu em 2005, com 91 anos de idade.