O Rio do Toco
Para você caro leitor, que trago essa história sobre um toco de árvore que flutua nos Rios do nosso arquipélago Marajoara, precisamente pelo Rio Paracauari, conta a Dona velha Anchieta, moradora da Região e pajé da Cidade.
Em meados dos anos 2000, Dona Anchieta adorava realizar à luz do luar rodas de histórias com jovens e crianças da Vila do Pesqueiro, onde morava. Em noites de lua cheia, amava contar relatos sobre visagens, encantados e lendas que só existiam na Ilha do Marajó. Histórias sobre a Matinta Perera, Boto cor de Rosa, Cobra Grande, Mãe d’água, Caruanas e tantas outras entidades que habitavam aquela Ilha tão rica de seres encantados. Certo luar, Anchieta sentada à beira da praia com as crianças, ao redor de uma fogueira contava a tal lenda do Rio do toco.
– Vocês sabiam crianças que há muito anos tem um toco que flutua no nosso Rio Paracauari?
– Não! Responde todo animado o gitozinho.
– Dizem as más línguas que o toco dessa árvore, era uma árvore muito sagrada para os seres Caruanas que vivem em nossos rios, certo dia um grupo de madeireiros resolveram derrubá-la por ela ser tão linda e vigorosa, e queriam ganhar muito dinheiro com ela, mas ao transportá-la de balsa um pedaço do tronco caiu no rio, e então o ser caruana das águas amaldiçoou todo homem que ali adentrasse a mata para fazer mal a qualquer planta ou animal da nossa região.
Após isso, o toco passou a boiar inesperadamente pelo rio, e toda vez que ele emergia do fundo para boiar entre a travessia das Cidades de Camará e Soure, todos podiam ter uma certeza que naquele dia, alguém iria morrer, pois o toco trazia o mau presságio da morte!
E não demoravam muito não, os noticiários da Cidade informavam sempre um dia após o aparecimento do toco que algum morador morreu afogado no Rio.
– Mas Dona Anchieta, o que é um mau presságio? Perguntou Inaê toda assustada.
Dona Anchieta então lhe respondeu:
– É quando minha filha, alguém te roga uma praga, quando a gente sente que algo de ruim vai acontecer com a gente, sabe?
– Tia Anchieta, e como é esse ser Caruana que vive nas águas? Pergunta curioso o pequeno Aboio.
– Ah meu fio, os Caruanas que abrem os portais das águas se Chamam “Caruana Jacundá” e “Caruana Jandiá”, eles são homens com cabeças de peixes, tem olhos azuis, e suas costas são cheias de barbatanas, bem grossas com suas escamas. E eles podem se transformar em pessoas e nos levar para dentro do rio, sem perceber.
– Nossa Dona Anchieta, agora estou com medo de nadar na praia, vai que ele me encanta?! Quero não, tenho medo pela minha mãe.
– Mas não se preocupe Inaê, os encantados só dão lição àqueles que fazem mal para nossas árvores.
– Mas vocês sabiam que tem outros tipos de Caruanas? Tem o Caruana Itauí, que parece uma estrela do fundo-do-mar, Caruana Pocará que protege as pessoas que se banham nas praias...
– Oh, viu só Inaê? Ele não machuca não! Interrompe Aboio.
– E o Caruana Cobra que moram nas águas, mas esse eu tenho medo. Ele pode te encantar fácil, fácil e querer que tu fique lá com ele.
– Ele é parente da Cobra Grande? Pergunta Aboio.
– Hahaha, acredito que seja um primo distante dele Aboio. Mas é ele quem judia dos pequenos que tentam matar as nossas matas. Ele só tenta proteger o que é deles e que não cuidamos com afeto. Os Caruanas são seres que protegem tudo ao nosso redor.
Certo dia meninos, um fazendeiro daqui da região soube dessa história do toco do rio. Ele tinha grandes posses, muitas cabeças de búfalos e era um grande produtor de queijo de búfalo da nossa região. Mas em uma de suas andanças à noite pela cidade, ouviu de um grupo de pequenos produtores que o tal toco havia aparecido no Rio Paracauari, e que no outro dia Seu Arlindo havia falecido se piruetando em um galho de mangue, logo após o tal do toco aparecer.
Os burburinhos eram muitos pela coincidência. Sabem como é cidade pequena, né? A fofoca bate na porta do outro rápido. Então o tal fazendeiro desafiou todos ali daquela roda que quando aparecesse esse tal toco, ele iria laçar ele e retirar do rio, para acabar logo com a tal crendice. Dizia ele todo pomposo, querendo se amostrar para os demais que eram corajosos, e que tudo não passava de lorota que o povo inventava.
Então o fazendeiro esperou, esperou, esperou dias até chegar o momento que ele encontrara esse “tal de toco”, assim como ele chamava.
O seu capataz lhe avisou que havia avistado no rio próximo, os dois saíram correndo cavalgando nos búfalos até a beira do rio. Chegando no trapiche, o fazendeiro disse para o seu capataz: “É hoje que eu mostro que tudo isso não passa de besteira pra esse povo”. Então ele tirou da sua cintura sua corda, fez o nó para poder laçar, rodopiou para o alto três vezes, estava tão confiante como uma criança que se joga no rio sem medo de se afogar.
Só ouviasse o som do giro da corda “Vrum, vrum, vrum” e sentia-se aquele vento forte que fazia ao redor. Então ele lançou “Vruum”. Não conseguiu laçar o toco.
Rodopiou com mais força agora para o alto, olhando fixamente para o tronco como se estivesse caçando um bicho, e então lançou de novo “Vruum”. Não conseguiu novamente.
Seu capataz ficou surpreso, porque seu Chefe não errava seus búfalos, e aquele tronco era tão menor, ficou se perguntando: “Será que isso é coisa de encantado?”
Então tentou a terceira e última vez laçar o tronco, agora ele sentia raiva por ter sido desafiado e não ter conseguido pegar o tronco, e mais que tudo queria provar para todos que era o melhor. Girou novamente... E jogou no ar.
E sabem o que aconteceu crianças?
– Não! O que aconteceu?
– Ele conseguiu? Indagou Inaê.
– Não, acho que caiu no rio. Disse Aboio.
– Não crianças, nada disso. O nó do seu laço se desfez, fazendo um estalo no ar “Pá”. Era o Caruana pregando peça para avisar que ele não mandava nas águas, e que ele só não foi porque não era à hora dele ainda.
Mas tenham certeza pequenos, todos aqueles que se foram não morreram, foram encantados no fundo do rio pelos espíritos Caruanas, para aprenderem a cuidar da nossa natureza e não desafiar suas forças.
Autor
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Me chamo Julianna Pacheco, tenho 30 anos e sou bibliotecária da Prefeitura de Belém. Desde os meus 15 anos escrevo, embora nunca tenha publicado oficialmente. Atualmente, como contadora de histórias, sinto a necessidade de levar alegria a jovens e adultos. Compartilho narrativas que dialogam com minha vivência e com a cultura do Pará. Sou da Religião de Matriz Africana e, em minha terra, circulam muitos causos sobre visagens, encantarias, pajelança e o imaginário amazônico. Inspirada por essas tradições, venho criando contos baseados em fatos reais e em mitos da região. Tenho como referência o escritor paraense Walcyr Monteiro, um dos grandes responsáveis por difundir nossas lendas urbanas em suas obras.
Que maravilha de « causo » como dizia minha vó Helena💕Parabéns Juliana. Continue escrevendo, « escreve é preciso »!