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‘Eu sei que não podemos nos calar’ – A poesia de Lívia Natália

Para a postagem de Lívia Natália no Ver-O-Poema.

EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS

Eu sei que não podemos nos calar,
mas há um tom a mais
que nos abafa o respiro.
Me encomendaram poemas sobre o que se passa,
e caminho pelas ruas açodadas
a me perguntar quando tudo isso
passa?

Os ombros do poeta sustentam o mundo,
mas quanto do mundo sobrará para amparar
os ombros fartos da poeta?

Não há palavras que se possa limpar e usar
para dizer do descompasso do tempo:
um tiro cravou-se fundo no peito —
no tempo em que um disparo bastava —
e lá estávamos, Chico Mendes, jazidos,
Índio Galdino, incendiados.
Candelária, entre a noite densa e a bainha da
[ madrugada, destecidos.
Esstávamos Ônibus 174, no camburão justiceiro,
[ asfixiados.

Hoje, uma bala no peito mal nos abre uma humilde vala.
Nosso algoz nos alveja 111, 80,
Nos atinge Vila Moisés, Cabula, Carandiru
e caímos.

Marcha sobre nós com seus pés de comer cintilâncias.
e não sobra uma estrela que diga
ainda haver poesia
nestes impossíveis dias.

(Disseram que chega um tempo em que não se diz
[ mais: “meu Deus!”
Chegou o tempo em que podemos perguntar:
[ há Deus?)

Nosso algoz nos tocaia em Marielles mil,
e miliciam a esperança que trazíamos no peito,
ele nos executa numa esquina
entre o medo
e a flama que carregávamos viva de desejo.

Há, no entanto, a força do sim.
E, como sempre,
sobrevivem, estilhaçadas,
sementes que nos prometem alguma primavera.

§

ELEGIA

   A um Jovem morto pela Fúria do Estado

A morte sempre me dói num descampado,
descobre, em minha pele fina,
searas abertas para as lágrimas.
Lasca fundo o gorgomilo
e fere os miúdos de mim
com unhas grandes.

A morte do outro,
um meu desconhecido,
um ignorado de mim,
rói o grosso do meu afeto:
mistura entranhas
e desabriga o sangue das feridas secas.

Dói.

E eu nunca sei o que fazer
com isso,
que é o desamparo.

§

QUADRILHA

Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.

§

ORÁCULO DE OXUM

O Rio foi feito para se beber.
De que servem os pés
a tatear Seu fundo macio?
Tolo ante o Mistério,
a interpretar com dedos cegos
o intangível lamoso de suas palavras?

A carne do Rio é feita de esperas.
Seu profundo é ancestral.
E memória assentada na inquietude escura.
As mãos do Rio madrugam silêncios
e lambem as pernas bonitas das lavadeiras,
lavando-se no sal de sua negrura.

O Rio, se aquietado nas Lagoas,
acha caminho de Mar
mordendo o útero da terra.
Vertido em Mar,
talha as embarcações
na salmoura das correntes,
cria fantasmas na beira,
tendo comido seus nomes.

Dizem que não se mede a profundidade de um Rio
com os dois pés.

Não mesmo.

O rio foi feito para se beber
— com o corpo….

Foto do autor

Lívia Maria Natália de Souza Santos nasceu em Salvador – BA em 1979. Filha de Osun, criou-se nas dunas no Abaeté e, segundo a autora, alimentada por Iemanjá, muito se banhou na poética praia de Itapuã. Talvez por isto as águas sejam seu grande tema em Água negra, livro de estréia, ganhador do Concurso Literário do Banco Capital em 2011 Categoria Poesia, e de Correntezas, seu próximo livro de poemas. Consagrada a Osun e Odé no Terreiro Ilê Asé Obanan, a vivência no Candomblé de fundamento Ketu é um dos temas mais fortes de sua escrita, na qual comparecem também temáticas relativas à vivência da mulher negra com seu corpo, cabelos e todos os signos étnicorraciais que atravessam, buscando subverter conceitos e reinventar modos de ser. Lívia Natália é Mestre (2005) e Doutora (2008) em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é Professora Adjunta do setor de Teoria da Literatura da UFBA, onde coordena os grupos de pesquisa Derivas da Subjetividade na Escrita Contemporânea, no qual pesquisa literatura contemporânea escrita em Blogues, e Corpus Dissidente: Poéticas da Subalternidade em escritas e estéticas da diferença, no qual se dedica a estudar a Literatura Negra escrita por mulheres no Brasil e nos PALOP, com recorte em gênero, raça e sexualidades. Além de ensinar disciplinas ligadas ao campo da Teoria da Literatura na UFBA, também coordena e ministra Oficinas de Criação Literária nesta Universidade e em projetos, para crianças em situação de risco. Atualmente, faz formação em Psicanálise Clínica.

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