
EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS
Eu sei que não podemos nos calar,
mas há um tom a mais
que nos abafa o respiro.
Me encomendaram poemas sobre o que se passa,
e caminho pelas ruas açodadas
a me perguntar quando tudo isso
passa?
Os ombros do poeta sustentam o mundo,
mas quanto do mundo sobrará para amparar
os ombros fartos da poeta?
Não há palavras que se possa limpar e usar
para dizer do descompasso do tempo:
um tiro cravou-se fundo no peito —
no tempo em que um disparo bastava —
e lá estávamos, Chico Mendes, jazidos,
Índio Galdino, incendiados.
Candelária, entre a noite densa e a bainha da
[ madrugada, destecidos.
Esstávamos Ônibus 174, no camburão justiceiro,
[ asfixiados.
Hoje, uma bala no peito mal nos abre uma humilde vala.
Nosso algoz nos alveja 111, 80,
Nos atinge Vila Moisés, Cabula, Carandiru
e caímos.
Marcha sobre nós com seus pés de comer cintilâncias.
e não sobra uma estrela que diga
ainda haver poesia
nestes impossíveis dias.
(Disseram que chega um tempo em que não se diz
[ mais: “meu Deus!”
Chegou o tempo em que podemos perguntar:
[ há Deus?)
Nosso algoz nos tocaia em Marielles mil,
e miliciam a esperança que trazíamos no peito,
ele nos executa numa esquina
entre o medo
e a flama que carregávamos viva de desejo.
Há, no entanto, a força do sim.
E, como sempre,
sobrevivem, estilhaçadas,
sementes que nos prometem alguma primavera.
§
ELEGIA
A um Jovem morto pela Fúria do Estado
A morte sempre me dói num descampado,
descobre, em minha pele fina,
searas abertas para as lágrimas.
Lasca fundo o gorgomilo
e fere os miúdos de mim
com unhas grandes.
A morte do outro,
um meu desconhecido,
um ignorado de mim,
rói o grosso do meu afeto:
mistura entranhas
e desabriga o sangue das feridas secas.
Dói.
E eu nunca sei o que fazer
com isso,
que é o desamparo.
§
QUADRILHA
Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.
§
ORÁCULO DE OXUM
O Rio foi feito para se beber.
De que servem os pés
a tatear Seu fundo macio?
Tolo ante o Mistério,
a interpretar com dedos cegos
o intangível lamoso de suas palavras?
A carne do Rio é feita de esperas.
Seu profundo é ancestral.
E memória assentada na inquietude escura.
As mãos do Rio madrugam silêncios
e lambem as pernas bonitas das lavadeiras,
lavando-se no sal de sua negrura.
O Rio, se aquietado nas Lagoas,
acha caminho de Mar
mordendo o útero da terra.
Vertido em Mar,
talha as embarcações
na salmoura das correntes,
cria fantasmas na beira,
tendo comido seus nomes.
Dizem que não se mede a profundidade de um Rio
com os dois pés.
Não mesmo.
O rio foi feito para se beber
— com o corpo….
