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“Cabeça de peixe” – Uma história de sonho com as águas, por Edmir Carvalho Bezerra

Cabeça de Peixe — Ilustração do conto de Edmir Carvalho Bezerra
“O fantástico não está distante: ele mora nas perdas, nas ausências, nas infâncias partidas, nos olhos dos mortos, nos animais que falam, nos homens que choram.”

CABEÇA DE PEIXE

Uma história de sonho com as águas, por Edmir Carvalho Bezerra

Cada conto é um fragmento de um mundo onde o insólito se mistura à crônica do cotidiano: Um pássaro que chora e anuncia presságios; a mulher que pode virar porca; uma cabeça de peixe; o último barco levando um príncipe de palavras; um lavrador cego de luz, pleno de sabedorias.

A coletânea se constrói como um mural de vozes, lendas e ribeirinhas. Na rua estreita, na aldeia, às margens do rio, há sempre uma memória a se luzir em encantamentos.

Com estilo sensível e linguagem carregada de imagens líricas, Edmir convida o leitor a atravessar essas águas encantadas, onde as histórias ainda fulgem uma luz misteriosa — Como um pássaro que aprendeu a chorar no coração da noite.

— Ricardo Maia Amanajás, Vice-presidente da Associação Cultural Sabor Marajoara

Ouça Edmir Carvalho Bezerra lendo um trecho do conto

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A tarde se arria pros lados do Jiquiriqui, canoinhas passam nos olhos miúdos do homem tomado de mudez solene. Uma saudade corta até a última lágrima. O pai de Francisco arreda as garças dos olhos, murcha o derruir do dia, engole uma tristeza que vai ser sua também, caro leitor.

Sob um céu de lua ausente, o Gurupatuba desliza salpicado de estrelas distantes. Uma luz a mais vem do pescador laternando, beirando as águas. À noite, o animal do fundo vem beber um gole de ar e é surpreendido pelo arpão da fome.

Dessa vez, o grito foi dentro d’água. Um remoinho, um salto, a lanterna foca o barulho, o brilho azul esverdeado, o alvejado afunda.

Dois canoeiros fogem da água que lhes puxa, o redemoinho que atraiçoa está enfurecido.

Feito um relâmpago, atravessam com a notícia de terem acertado uma coisa grande.

Francisco ofega no escuro, se bate, se segura como pode. O pai o ajuda na subida dos cinco degraus da escada de madeira puída. A vida vai desaparecendo, o desespero do pai se agiganta. Francisco tem o arpão cravado no peito.

O homem toma o remo, atravessa para a cidade, busca o médico antigo, o único que visitava Francisco, desde que a mãe, de uma tristeza doente, morreu, quando o menino ainda perto dos três anos de idade. A parteira, velha dona Ana, fez silêncio desde o nascimento de Francisco. O médico, dele também não dizia a ninguém.

As canoas, as rabetas, os pequenos barcos, que passavam ao final das tardes, viam sempre aquele vulto na janela da casa sobre o rio. Francisco nunca fora à cidade. Era um jovem perto dos 18 anos de idade. Francisco morreu.

O vento roubou da boca do médico a contação e a arrastou por toda a cidade. Até as comunidades vizinhas e desvizinhas se comoveram com o desalívio do pai.

A notícia voou mesmo. A comoção e a curiosidade chegaram lá nas almas dos ribeirinhos da Ponta do periquito, do Miri, Curral Grande, Jacoara, Flexal, Jaburu, Jararecapá, Cabeceira, Piracaba, Curicaca, Nazaré, Livramento, Cuçaru, Piquiá, São Diogo, Seis Unidos, Bonsucesso, Jurunduba, Curralinho, Paituna, Cuieira, Campinas, Bom Jardim, Santa Rita, Cacoal Grande, Piapó e até mais para lá, não foram poucos os que se moveram.

Desobedeceram aos perigos da curva acima do matadouro velho, enfrentaram os rebujos.

Amolaram os remos na água. Fez-se uma procissão na direção da casa do morto. Vinham da Iha Grande, do lago Branco, São João, Taxipá, Papucu. Vieram de todas as águas, vieram todos.

Mas, qual foi a parte da fala que causou tanto assombro? Francisco tinha a cabeça de um peixe. Um homem com cabeça de peixe?!

Explicado estava. Por isso, dele, só se via a sombra, o vulto no final das tardes. Por essa causa, nunca pisou os pés na cidade. Somente o pai visitava o mercado, o comércio, comprava sempre as precisões, papéis, lápis e cores.

A casa se rodeou de pequeninas embarcações, tomou-se de um entra e sai, um sobe e desce. Estendido sobre uma mesa rústica, o corpo do jovem que tinha cabeça de peixe.

O pai narrou perdidas vezes a história do filho. Nas tábuas das paredes se pregavam desenhos bonitos do fundo do rio. Paisagens submersas, acaris perfeitos, pirarucus brilhantes, tucunarés, Piranambus, sardas, aracus, tambaquis, pescadas, pacarés, surubins e tantos e tantas.

Francisco visitava o fundo das águas por horas, todos os dias. Não falava, não sorria, não chorava. Iniciou desenhando com carvão tudo o que via. Foi, então, que ganhou do médico os primeiros papéis e lápis. Francisco passou a desenhar seu mundo, suas visitas. Era o seu modo perfeito de falar.

A noite chegou entre rezas e converseiros. O corpo foi bonitamente preparado. Subiu uma lua triste, as águas do Gurupatuba estavam inquietas, houve quem dissesse que o rio chorava.

Deu-se a hora mais estranha. Os peixes também chegaram, se agitavam ao redor das pernas da casa, saltavam para Francisco. Brilhavam escamas, acendiam olhos-d’água, olhos de todas as cores. Chegavam barrancos esverdeados, fez-se um jardim de vitórias-régias. A frágil casa sentia o banzeiro vindo das águas, todos se arrepiavam, tudo se estremecia daquele clamor.

O pai consentiu com a ideia que foi a de todos. Vieram buscar Francisco. Foi a noite mais bonita do mundo. Pousaram o corpo do menino na água, as vitórias-régias o ampararam.

Seguiu uma procissão de peixes brilhantes, uma fina música de nadadeiras, a lua se desmanchou por entre nuvens.

Lá longe, afundava o jovem morto. O pai estendeu os braços, desesperou mais uma vez.

Francisco foi morar no céu dos peixes.

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Elke Lubitz

Maravilhoso!

Marcelino Roque Munine

Sempre com vénias e fascinantes poemas.

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