
OS OLHOS ENCANTADOS DE UMA AFOGADA EM LÁGRIMAS
Fumação pra todos os lados, retalhos de luzes num voejo. Medonhavam do encanto, o pai, a mãe, os chegados de reza. A cuspideira transbordava do cansaço das bocas. Eram unguentos, óleos, querosene, luscos de fio e pavio.
Madrugou de nenhuma insônia dar conta. Pronto estava que Tereza adormeceu com um semblante de anja. O Pajelo estava feito. Curada Tereza, benza a Deus.
Fazia um tempo esticado que a moça era de desmaios, desfeitas, palidez de roubar até o brilho dos dentes. Remédio não se achou na aldeia, reza da igreja, benzeção, banhos, desencosto, Tereza não sarava.
Veio das arranjações um pajé. À noitinha, roncou o carro de boi. Já era madrugada quando o homem de mãos enrugadas mandou que pusessem fogo nas roupas da moça. O mal havia partido.
Que não deu foi dois dias e Tereza não aguentava um caribé. Um pássaro se batia na pouca luz da casa, o adoecimento parece que havia só dormido um pouco. Que tal o pajé? Também é certo que da boca, nem dos olhos da doente se ouviam uma queixa. Era um amofinamento quieto.
Só um jeito botou nas ideias o pai. Era a manhã de um domingo de muita chuva. Tereza embrulhada em frio, em febre, toda descurada. No meio do deságuo, uma afogada na dor, atravessou o longo estirão, embaixo de um guarda-chuva de asa quebrada, que ao longe, parecia uma aura agourenta.
Embarcou mais a mãe, no navio que descia o rio no rumo da capital. Os parentes hão de saber de médico de Deus que a cure.
Demorou-se o tempo. Chegou a primeira carta de notícias. Que o pai não sabia ler, entregou ao padre.
Nada, não. Tereza tá passando dias difíceis, mas logo vem a cura e volta pra casa. O resto era voz que se calava, proceder silencioso.
O pai cuidava da lida, vez em quando desenhava uma saudade no ar. Foram muitos os dias e noites a consultar pelo feitiço, o malino, o desjuízo, uma gota de breu, talvez mundiação, o fundo, o rio, o igarapé, os encantes, os escondidos… Quem desiludiu a filha?
Foram duas mais cartas, o padre resumiu a última num ‘assim seja’, Deus escreve certo…! Deu a notícia esperada. Na subida do próximo navio, Tereza chega.
Não economizou a notícia, o pai. Na tarde morna, o navio entrou na boca do rio, aportou no trapiche velho, apinhado das gentes. Era dia de santa Luzia.
Tereza desembarcou. Era beleza e renascimento. Os olhos de uma ressuscitada, as bochechas rosadas de saúde.
De longe, um benzedor abanou as palhas que carregava, entoando …Atotô obaluaê…Ele salva, ele cura, Ele traz a proteção, é o meu pai dono da terra…
Do padre ecoou a Bíblia. …nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, … nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus…
Tereza na frente, a avó atrás com um encantado nos braços.
Seguiu a tarde. À noitinha, soaram os fogos de santa Luzia. Uma rajada de silêncio se afogava no pôr do sol.
foto: Luiz Braga
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Escreve poemas, contos, crônicas. Publicou os livros "Dizerodito - poemas", "Breves cartas de amor", "O que faço com esses versos de amor?", "Eu tenho um segredo para as suas lágrimas - Poesia infantil para adultos lerem", "O Caderno de Benjamim" Nascido na Cidade de Monte Alegre - Pará, mora na capital Belém.