“Os olhos encantados de uma afogada em lágrimas” por Edmir Carvalho Bezerra

OS OLHOS ENCANTADOS DE UMA AFOGADA EM LÁGRIMAS
Fumação pra todos os lados, retalhos de luzes num voejo. Medonhavam do encanto, o pai, a mãe, os chegados de reza. A cuspideira transbordava do cansaço das bocas. Eram unguentos, óleos, querosene, luscos de fio e pavio.

Madrugou de nenhuma insônia dar conta. Pronto estava que Tereza adormeceu com um semblante de anja. O Pajelo estava feito. Curada Tereza, benza a Deus.

Fazia um tempo esticado que a moça era de desmaios, desfeitas, palidez de roubar até o brilho dos dentes. Remédio não se achou na aldeia, reza da igreja, benzeção, banhos, desencosto, Tereza não sarava.

Veio das arranjações um pajé. À noitinha, roncou o carro de boi. Já era madrugada quando o homem de mãos enrugadas mandou que pusessem fogo nas roupas da moça. O mal havia partido.

Que não deu foi dois dias e Tereza não aguentava um caribé. Um pássaro se batia na pouca luz da casa, o adoecimento parece que havia só dormido um pouco. Que tal o pajé? Também é certo que da boca, nem dos olhos da doente se ouviam uma queixa. Era um amofinamento quieto.

Só um jeito botou nas ideias o pai. Era a manhã de um domingo de muita chuva. Tereza embrulhada em frio, em febre, toda descurada. No meio do deságuo, uma afogada na dor, atravessou o longo estirão, embaixo de um guarda-chuva de asa quebrada, que ao longe, parecia uma aura agourenta.

Embarcou mais a mãe, no navio que descia o rio no rumo da capital. Os parentes hão de saber de médico de Deus que a cure.

Demorou-se o tempo. Chegou a primeira carta de notícias. Que o pai não sabia ler, entregou ao padre.

Nada, não. Tereza tá passando dias difíceis, mas logo vem a cura e volta pra casa. O resto era voz que se calava, proceder silencioso.

O pai cuidava da lida, vez em quando desenhava uma saudade no ar. Foram muitos os dias e noites a consultar pelo feitiço, o malino, o desjuízo, uma gota de breu, talvez mundiação, o fundo, o rio, o igarapé, os encantes, os escondidos… Quem desiludiu a filha?

Foram duas mais cartas, o padre resumiu a última num ‘assim seja’, Deus escreve certo…! Deu a notícia esperada. Na subida do próximo navio, Tereza chega.

Não economizou a notícia, o pai. Na tarde morna, o navio entrou na boca do rio, aportou no trapiche velho, apinhado das gentes. Era dia de santa Luzia.

Tereza desembarcou. Era beleza e renascimento. Os olhos de uma ressuscitada, as bochechas rosadas de saúde.

De longe, um benzedor abanou as palhas que carregava, entoando …Atotô obaluaê…Ele salva, ele cura, Ele traz a proteção, é o meu pai dono da terra…

Do padre ecoou a Bíblia. …nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, … nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus…

Tereza na frente, a avó atrás com um encantado nos braços.
Seguiu a tarde. À noitinha, soaram os fogos de santa Luzia. Uma rajada de silêncio se afogava no pôr do sol.

foto: Luiz Braga

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Autor

  • Edmir Carvalho Bezerra

    Escreve poemas, contos, crônicas. Publicou os livros "Dizerodito - poemas", "Breves cartas de amor", "O que faço com esses versos de amor?", "Eu tenho um segredo para as suas lágrimas - Poesia infantil para adultos lerem", "O Caderno de Benjamim" Nascido na Cidade de Monte Alegre - Pará, mora na capital Belém.

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Octaviano Joba

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