
Há pessoas alucinadas, vivem se derramando em visões de outros mundos. Seus espíritos não se contentam com a vida comum, nem dias iguais. Nutrem-se a escreverem viveres para os guardadores de memórias.
Dito isso, na roda desocupada, ele começou essa história.
– Foi desses, Saturnino. Desde muito novo se habitava de modos diferentes e, por vezes, curiosos. Aqui nasceu, tornou-se homem maduro. Foi, com o gastar do tempo, ficando só. Dizem que mulher e os filhos se foram, nunca se ouviu promessa de voltar.
O certeiro é que Saturnino abandonou os afazeres, se trocou por sozinho. Ficou de conversas com o silêncio, era visto pelas manhãs, arrumando o entorno da igreja sem portas, olhava a pequena torre, onde dois sinos badalavam para seus olhos. Era o ritual dos sinos, ninguém os tocavam. Bastava Saturnino se aproximar da igreja. Era a voz, a melodia da presença dele todas as manhãs, aquele badalar entristecido, chamando para uma missa que não aconteceria.
Recolhia-se o homem pelo resto do dia. A casa pintada de um branco nublado, uma porta, duas janelas azuis. Metia-se numa solidão sem grito.
Surgia ao cair de todas as tardes, noutro ritual já esperado por todos, mas sempre parecendo novidade. O céu ganhava um forro de ferrugem, as garças paravam os ventos. Descia a rua de pedras, Saturnino conduzindo um rebanho de cabras, na direção do rio.
Mas olhe lá que tal rebanho não se via. Saturnino as chamava pelos nomes, buscava por Inaiê, Anahy, Zadeã, outra Mariã. Infelice, dizia ele, uma muito querida. Todos assistiam ao homem e juravam ouvir o som dos guizos nos pescoços e os trotes dos cacos nas pedras. Um rebanho de cabras invisíveis descia até o rio. Ficavam bisbilhotando as margens, lambendo a água.
Saturnino mirava o rio bebendo o escuro, banhava, com gestos tocando o nada, uma a uma. As luzes e as vozes iam se apagando, se aquietando, todos recolhidos, o ouviam retornar com suas cabras.
Seguia a cidade, os ditos daquele rebanho de ventos. Alguns diziam sentir o odor das cabras, o roçar de suas peles nas pernas, as águas se afundavam de coisas invisíveis.
– As coisas invisíveis? também fazem falta, se nos faltam. Disse isso pra adiantar a história.
– E assim foram todos viver o dia que dá sentido a esse conto. Os sinos não se moveram, os de costume repararam a ausência de Saturnino. Aquele corpo branco avermelhado, o inconfundível homem loiro grisalho, nem alto nem baixo, mais gordo do que forte, com uma espécie de tatuagem na nuca, semelhando a uma inscrição rupestre lá das serras, deixara os sinos mudos.
Correu a manhã com ventos agitando os pequenos barcos, os ingás derramaram seus frutos, as areias sobre as pedras faziam redemoinhos, a samaúma chovia seus algodões, os mucajás amadureceram, os tucumãs douraram nos cachos.
Alguém comentou ver o sol mais encardido, outro chamou mais um e uma e muitos presenciaram os sinos da igreja sem portas, pingando gotas de suor, ou de lágrimas?!
– Satuca sumiu, desapareceu.
– Como sumiu?
– Sumiu, ninguém sabe. Sumiu.
– Vamos esperar. Tá quase na hora dele passar com o rebanho.
As escamas de nuvens já se apagavam. Ouviu-se o balido do rebanho, era uma centena de cabras dobrando os chocalhos, pisando as pedras, barulhando a rua, na direção do rio.
Vivas para todos os olhos. Eram cabras brancas e pretas, avermelhadas, olhos amarelos, cascos sujos da poeira. Todas possuíam a pele marcada com inscrições rupestres semelhantes a que Saturnino possuía na nuca. Tomaram o rumo do rio e lá se puseram. Pareciam procurar Saturnino, concordavam as falas.
Seguiram para a casa de Saturnino Bebé barbeiro, seu Francisquinho e Moemo, outros iam mais atrás. Um leve empurrão e estavam do lado de dentro. Um dentro vazio, um desbrilho imenso. No chão, havia marcas de pegadas dos cascos, algumas subiam pelas paredes.
Foram olhar as cabras, o rio parecia domar lamentos que chamavam por alguém na outra margem.
A noite suspirava o cansaço daquele dia, desceu até o chão uma neblina, envolveu o rebanho, silenciou as pedras. Quando a cerração se dissipou só as luzes das estrelas dançavam nas águas.
***
Ana Meireles Antônio Cunha Antônio Moura Celso de Alencar Clarice Lispector claudio daniel Cláudio Daniel conto Cristiane Grando crítica social crônica Edmir Carvalho Bezerra Edyr Augusto Proença Emily Dickinson ensaio Fernando Dezena Fernando Pessoa Flávio Viegas Amoreira Helder Bentes Herberto Helder literatura Literatura africana literatura brasileira literatura contemporânea literatura lusófona literatura paraense literatura portuguesa livro de poesia Marcelino Roque Munine Marcia Tigani mia couto moçambique Octaviano Joba poemas poesia poesia brasileira Poesia Contemporânea poesia feminina poesia lírica poesia portuguesa Poesia visual Poeta poeta no Ver-O-Poema Ver-O-Poema Vlado Lima
Bons contos e boas aspirações em suas poesias fascinantes que criam e dão vontade de ler para conquistar ainda uma cultura de leitura dialógica!
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